Научная статья на тему 'Lukàcs e a questão da democracia como estratégia'

Lukàcs e a questão da democracia como estratégia Текст научной статьи по специальности «Социологические науки»

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ditadura democrática / nova democracia / democratização socialista / stalinismo. / democratic dictatorship / new democracy / socialist democratization / Stalinism

Аннотация научной статьи по социологическим наукам, автор научной работы — Marcos Del Roio

A questão da democracia como estratégia comparece no pensamento de Lukács de forma organizada nas chamadas Teses de Blum, redigidas em fins de 1928, como fórmula de luta contra a dominação burguesa e a desenvolve em 1945-47, na fase da nova democracia como caminho de superação do capitalismo. Lukács desenvolve também uma reflexão sobre a democratização socialista como fórmula de destruir a burocracia que havia germinado e se fizera poder e hábito nas experiências socialistas.

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Lukàcs and the issue of democracy as a strategy

The question of strategy firstly appears on Lukács’ thought on the so-called Blum Theses, written towards the end of 1928 as a formula against bourgeoise domination, further developed between 1945-47, phase of the new democracy as the path for overcoming Capitalism. Lukács also develops a reflection about socialist democratization as a formula to destroy the bureaucracy that had germinated, becoming power and habit in socialist experiences.

Текст научной работы на тему «Lukàcs e a questão da democracia como estratégia»

50, enero 2021:1-21

Lukács e a questao da democracia como estrategia

Lukács and the issue of democracy as a strategy

Marcos Del Roio*

Resumo: A questao da democracia como estratégia comparece no pensamento de Lukács de forma organizada nas chamadas Teses de Blum, redigidas em fins de 1928, como fórmula de luta contra a dominagáo burguesa e a desenvolve em 1945-47, na fase da nova democracia como caminho de superagáo do capitalismo. Lukács desenvolve também uma reflexao sobre a democratizagao socialista como fórmula de destruir a burocracia que havia germinado e se fizera poder e hábito nas experiencias socialistas.

Palavras-chave: ditadura democrática; nova democracia; democratizagao socialista; stalinismo.

Abstract: The question of strategy firstly appears on Lukács' thought on the so-called Blum Theses, written towards the end of 1928 as a formula against bourgeoise domination, further developed between 1945-47, phase of the new democracy as the path for overcoming Capitalism. Lukács also develops a reflection about socialist democratization as a formula to destroy the bureaucracy that had germinated, becoming power and habit in socialist experiences.

Keywords: democratic dictatorship; new democracy; socialist democratization; Stalinism. Recibido: 3 noviembre 2020 Aceptado: 2 enero 2021

1. Introdujo

A reflexao de Georgy Lukács sobre a questáo da democracia está bastante longe daquilo que a Ciencia Política contemporánea defende. A ánsia em se fazer uma ciencia particular dotada de métodos similares aos da economia, faz com que a Ciencia Política se atenha ao pensamento liberal e se confunda com uma ideologia burguesa sem qualquer perspectiva de emancipado humana. A abordagem que Lukács faz da política e da democracia está fundada na Filosofia, que, por sua vez, implica uma práxis social, um cotidiano dos homens, para que seja uma visáo da realidade concreta e

Marcos Del Roio é professor Titular de Ciencias Políticas de UNESP — Universidade Estadual Paulista, FFC - Faculdade de Filosofia e Ciencia, presidente do Instituto Astrojildo Pereira, editor da revista Novos Rumos

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nao de abstragoes puras. Assim, nas formulagoes de Lukács tendem a prevalecer uma reflexao teórica metodológica da Política e da questao da democracia.

Certo que Lukács, assim como todo autor capaz de imprimir uma marca na História, é expressao do seu tempo e da (s) cultura (s) que vivenciou. No caso de Lukács, sua vida e cultura estiveram marcadas pela Hungria, Alemanha e Rússia. Desse ambiente histórico cultural é que retirou toda a seiva de sua vasta obra. Com alguma aproximagao, pode-se dizer ter sido essa regiao que assistiu a eclosao da revolugao socialista entre 1917 e 1921, momento durante o qual Lukács aderiu ao movimento comunista.

O pensamento sobre a questao democrática em Lukács (e no marxismo, mais em geral) está sempre acoplado ao tema da revolugao, mesmo que de maneira nao explícita. Ao observarmos as reflexoes de Lukács podemos perceber que a sua produgao escrita versa sobre duas linhas principais: uma primeira, que trata da questao da democracia revolucionaria na Hungria, e outra que aborda a questao da democratizagao socialista do stalinismo, na URSS e na Hungria. No primeiro caso, trata-se da classe operária, aliada ao campesinato assumir o poder e dar inicio a transigao socialista no segundo caso trata-se de derrotar a burocracia que se apossou do Estado socialista.

Trata-se entao de seguir as reflexoes de Lukács e ao final constatar se há ainda alguma atualidade no seu pensamento político, se suas expectativas se realizaram ou nao. Importante lembrar que sua reflexao política aparece em documento partidário, artigos, conferencias e entrevistas, com apenas um texto, póstumo, mais sistemático. Outro elemento a ser sempre considerado é que Lukács, de 1918 até a morte ocorrida em 1971 esteve sempre no interior do movimento comunista, mesmo nos momentos de marginalidade e perseguigao.

2. A ditadura democrática.

Apenas no final de 1928 foi que o PCH (Partido Comunista da Hungria) conseguiu realizar o seu II Congresso. O PCH, a exemplo de todos os partidos comunistas, deveria se adequar as decisoes tomadas no VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em Moscou de julho a setembro daquele mesmo ano. Esse congresso terminou em compromisso entre o grupo de Stalin e o grupo de Bukharin, que divergiam em torno do conteúdo da crise capitalista que se perscrutava e sobre os termos da continuidade da NEP (Nova Economia Política) na URSS. O compromisso se rompeu em favor dos stalinistas logo depois de finalizado o congresso.

O congresso do PCH deveria também ser expressao de um compromisso entre as facgoes que se digladiaram nos anos anteriores. Quando o Comité Executivo da IC enviou uma carta aberta ao PCH, com denuncias sobre eventuais "desvíos de direita", o Comité Central do partido reprovou as teses escritas por Lukács para o congresso que se aproximava, identificadas como "direitistas" e "oportunistas". O congresso, finalmente reunido em fevereiro / margo de 1930, confirmou o descarte do documento, uma expressao precoce da era Stalin na URSS e Rakosi na Hungria.

O texto, que fiou conhecido como 'Teses de Blum' se dividia em cinco partes, a última das quais trazia o nome de "Os problemas principais da situagao atual". A primeira segao da parte 5 chamase "Ditadura Democrática", onde Lukács expoe sua teoria da revolugao democrática e socialista. Nessas poucas páginas, Lukács apresenta a ditadura democrática como meio de passagem para a ditadura do proletariado. Parece bastante claro que Lukacs traduz para as condigoes húngaras o processo

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revolucionário ocorrido na Rússia, em 1917, e da própria Hungría entre novembro de 1918 e março de 1919. De fato, entre a revoluçâo burguesa de março de 1917 e a revoluçâo socialista de novembro, vigeu na Rússia uma ditadura democrática, um período sem qualquer ordem jurídica e com dois polos de poder que disputavam a direçâo do Estado: o governo provisório e os conselhos operários.

Todavia Lukács chama atençâo para a necessidade de se perceber que "la dictadura democrática, pues, como realizacion perfecta de la democracia burguesa, es, en el sentido estricto de la expresion, um campo de batalla, un campo de lucha, que habrá de decidirlo todo, entre la burguesia y el proletariado". Acrescenta ainda que

'la dictadura democrática es una possibilidad para crear aquellas formas organizativas con ayuda de las cuales las amplias mazas de trabajadores hacen valer sus interesses frente a la burguesia. En el presente estádio evolutivo, la dictadura democrática es por principio incompatible con el poder económico y social de la burguesia, aun cuando el contenido explicito de clase de sus objetivos concretos y de las demandas que es preciso realizar de manera inmediata, non supera el marco de la sociedad burguesa, e incluso es la realizacion perfecta de la democracia burguesa". 1

Note-se que Lukacs afirma que a ditadura democrática abre a possibilidade de sublevaçâo das massas em direçâo á açâo revolucionaria espontánea e a criaçâo de formas organizativas próprias a fim de fazer valer os seus interesses contra a burguesia. A essa, por sua parte, interessa estancar e suprimir a espontaneidade das massas e as suas organizaçoes, de modo a normatizar a democracia conforme os interesses da hegemonia económica da burguesia. Assim que 'la dictadura democrática es, pues, una forma de transicion dialéctica a la revolucion del proletariado ... o a la contrarrevolucion, aun cuando, en su contenido inmediato, concreto, non va mas allá de la sociedad burguesa" e mais, "la dictadura democratica solo puede ser entendida, entonces, como la transicion concreta a través de la cual la revolucion burguesa se transforma en la revolucion del proletariado". 2

Na democracia burguesa radicalizada como ditadura democrática, a burguesia é ainda a classe dominante do ponto de vista económico, mas o poder político encontra-se assediado. O essencial é saber se a democracia organiza a classe operária e se endereça para a ditadura proletária ou a desorganiza e a perspectiva passa a ser da contrarrevoluçâo. Assim, nâo há um valor intrínseco à democracia, depende de qual classe organiza a ordem social e desorganiza a classe antagónica.

Para Lukács, entâo, a ditadura democrática representa um nexo dialético entre a revoluçâo burguesa e a revoluçâo proletária, em um movimento revolucionário único, sem desenlace pré-estabelecido. A revoluçâo socialista pode ser barrada pelo estabelecimento de uma forma jurídica constitucional ou por uma aberta contrarrevoluçâo violenta. Pressupoe-se entâo que Lukacs trate, de maneira mais ampla, de Países atrasados, do ponto de vista capitalista, nos quais a revoluçâo burguesa nâo havia ainda se completada.

A abertura das condiçoes de uma ditadura democrática, de um ou outro modo, pressupoe a compreensâo da democracia burguesa na era do imperialismo, em particular depois da guerra mundial. Os Estados Unidos da América, com a particularidade histórica de nâo ter tido um passado feudal e de ter configurado um espaço de ampla liberdade de acumulaçâo, assim como instituiçoes democráticas

1 Gyorgy Lukács, "Tesis de Blum"

2 Lukács, op. cit., p. 237

Escritos tempranos, Buenos Aires, Ediciones El Cielo por Asalto, 2005, p. 236

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burguesas capazes de impedir a ascensao política da classe operária, se fez de paradigma para as burguesias europeias. Ao mesmo tempo, no interesse da burocracia operária, "la socialdemocracia está empeñada em ayudar a construir una democracia de tipo americano en todos los Estados de Europa". 3

Lukács identifica duas diferentes formas de fascistizagao na Europa: um fascismo clássico, como na Itália, e um fascismo democrático, como na Alemanha e Inglaterra. Fascismo aqui, em primeiro lugar, trata da relagao entre Estado e classes sociais, em particular entre Estado e sindicato. Em todos os casos aparece a necessidade de o imperialismo introduzir "tendéncias fascistas" nos sindicatos, ainda que de formas diversas. No caso da Itália, a contrarrevolugao da pequena burguesia teve dificuldades para consolidar o poder do grande capital e mesmo grande parte da burocracia sindical teve que deixar espago para os novos sindicatos estatais fascistas. Na Alemanha foi aplicada uma lei de "conciliagáo estatal", com a qual o Estado passa a ser mediador do conflito de classe.

Entao, na reflexao de Lukács a oposigao simples entre democracia ou fascismo é uma falsa questao, que

"oculta a los trabajadores los auténticos objetivos de clase del tipo de democracia que es posible en el imperialismo actual, y respalda la opression de las luchas de clases, la prevencion institucional de las luchas por el salario, la introduccion de tendencias fascistas en los sindicatos, la integracion de la socialdemocracia y de la burocracia sindical en el aparato estatal fascista." 4

Insiste Lukacs que

"Hay que mostrar que la evolución democrática que está empezando a desarrollarse aqui y en las "democracias occidentales" es un género de fascistizacion que — en oposicion al tipo italiano — se basa en el trabajo mancomunado de la gran burguesia y de la burocracia obrera." 5

Assim, Lukács defende a consigna que comegava a vicejar na IC, de "classe contra classe", que seria teórica e praticamente mais correta, pois se prestaria a defesa da concepgao de que democracia mesmo seria aquela vigente na situagao de ditadura democrática, na qual a diregao da vida social estaria em disputa aberta entre as classes fondamentais. De imediato, a oposigao mais acertada entao seria entre a ditadura democrática e fascismos de todos os tipos, mas em perspectiva a oposigao seria entre ditadura proletária e ditadura do capital. A fusao entre grande capital e Estado vinha desde antes da guerra mundial, mas se acentuou depois desse período, agora com o respaldo das camadas dirigentes das classes trabalhadoras.

Sobre a Hungria, Lukács avaliava que depois da contrarrevolugao conduzida em 1920, pela pequena burguesia e pelo campesinato acomodado, havia sinais, no fim dos anos 20, de que o regime se encaminhava para a "ocidentalizagáo" com a institucionalizagáo de uma monarquia constitucional, que seria ao fim a versao húngara de um fascismo democratizado. Ao PCH tocaria lutar pela república, mas

3 Lukács, op. cit., p. 238.

4 Lukács, op. cit., p. 239.

5 idem

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como uma consigna que implica a luta contra a fascistizagáo e a conciliagáo estatal, uma luta de classe contra classe, por um governo de operários e camponeses, pela ditadura democrática.

A luta do partido, nas condigoes concretas da Hungria, onde formas feudais sobreviviam junto com um capitalismo relativamente desenvolvido, teria que estar centrada na questáo agrária, com a proposta de expropriagáo do latifúndio e de ocupagáo revolucionaria da terra. Assim que "también aqui el PCH es el único partido que inscribe en su bandera la realizacion consecuente de las demanda de la revolucion burguesa", mas sem se esquecer que 'los vestigios del feudalismo solo pueden ser extirpados mediante la eliminación del capitalismo". 6

Enfim, a concepgáo de Lukács era de que na Hungria se lutava contra um processo de fascistizagáo institucionalizado e que a luta deveria estar centrada na instauragáo de uma democracia sem amarras e limites — a ditadura democrática --, que levasse ao extremo a revolugáo burguesa e que se fizesse terreno de luta da classe operária pela diregáo da vida social em diregáo á revolugáo socialista. Lukács reprisava aqui o raciocinio da dialética da revolugáo que Lenin havia proposto já em 1905, mas na situagáo política ideológica vigente na IC naquele ano de 1929, essa orientagáo estratégica era inaceitável. Para a diregáo da IC, na qual agora predominavam os apoiadores de Stalin, a avassaladora crise capitalista que germinava, levaria a classe operária a assumir posigoes revolucionárias tais a buscarem a instauragáo direta da ditadura proletária, sem estágios intermediários, sem mediagoes dialéticas.

O descarte da tese escrita por Lukács fez que ele abandonasse a militáncia política direta e que, depois de um ano na Alemanha, fosse para a URSS em busca de aprofundamento em seus estudos filosóficos. De fato, como o próprio Lukács entendeu, foram nos anos 1929-1933, que a sua percepgáo do marxismo mudou decididamente para a centralidade da prática social, da práxis cotidiana e da práxis revolucionária.

Lukács teve que conviver com o regime stalineano sem jamais oferecer a sua adesáo. Chegou a ser detido em 1941, em circunstáncias pouco claras, mas que podem ter algum vínculo com o texto escrito no ano anterior, "Tribuno do povo ou burocrata?".

Nesse texto Lukács parte da imagem criada por Lenin, o qual opoe o tribuno do povo, como a postura do militante revolucionário, ao burocrata, mero administrador de sindicato, administrador de condigoes dadas e sem perspectiva de mudangas criativas. O burocrata se mantém no nível da consciencia espontánea das massas enquanto que o tribuno rompe com a espontaneidade de maneira que a consciencia se desenvolva.

"A semente da espontaneidade se torna fruto — e a classe em si (para usar a linguagem hegeliana) torna-se classe para si somente por meio da obra clarificadora de tal consciencia. Quem a desperta é o tribuno". 7

A consciencia espontánea aceita o capitalismo, a burocracia é própria do capitalismo, assim que "a espontaneidade transforma-se em burocratismo conforme um processo que náo é mais do que a intensificagáo extrema do hábito, que é o efeito conservador, socialmente estabilizante, da própria

6 P. 243-244.

7 Gyorgy Lukács, "Tribuno do povo ou burocrata?, Marxismo e teoria da literatura, Sáo Paulo, Editora Expressáo Popular, 2010, p. 111.

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espontaneidade".8 Por sua vez, "a criagáo do hábito faz nascer nos homens da sociedade capitalista uma relagáo espontánea e mecanicista, de mero registro burocrático, diante dos problemas da vida".9

Mas se a consciéncia espontánea tem relagao direta com o burocratismo e com a definigao de determinado hábito conservador no capitalismo, qual seria o significado do burocratismo no socialismo? Lukács recorda que desde 1918, Lénin havia apontado o problema do burocratismo e que também Stalin conclamara a luta contra o burocratismo em diversas ocasioes. Isso significa que a burocracia e o burocratismo como hábito sao funestos no socialismo, sao herangas do absolutismo e do capitalismo, que devem ser eliminadas.

O capitalismo favorece a expansao da burocracia e do burocratismo, mas

"no socialismo, ao contrario, o próprio desenvolvimento da economia, o despertar das massas para a vida cultural, e a expansao cada vez maior da democracia, provocam uma reagao ao burocratismo, e o Estado, o Partido Comunista e as organizagoes sociais lutam conscientemente para liquidá-lo".10

Assim é que a questao entre espontaneidade e consciéncia aparece novamente, mas em novas condigoes. Na medida em que a economia se organiza em sentido socialista a consciéncia espontánea também segue essa tendéncia, mas pode muito bem se descarrilar e se tornar habito burocrático. Por isso que Lukács chama atengao para a necessidade de se desenvolver a consciéncia socialista e esse esforgo cabe o tribuno do povo. Enfim, Lukács encontra uma nova atualidade na formulagao de Lénin. E isso é o mesmo que dizer que as massas trabalhadoras ainda nao se encontram preparadas em termos de prática social, de consciéncia, para o exercício da democracia e do autogoverno.

Em 1940, a leitura de Lukács era que a experiéncia socialista na URSS estava deformada pela sobrevivéncia da burocracia e do burocratismo e essa sobrevivéncia derivava em grande medida dos limites culturais, da insuficiéncia do desenvolvimento da consciéncia socialista e da difusao de um novo hábito social efetivamente socialista. Seria trabalho dos intelectuais comunistas, como tribunos do povo, investir na educagao por uma consciéncia socialista e um novo hábito cultural. Nao seria outra a indicagao de Lénin nos seus últimos escritos.

O otimismo de Lukács poderia ser contestado por problemas como a resisténcia da burocracia ou mesmo se a burocracia, mais que uma sobrevivéncia indesejável do absolutismo e do capitalismo nao seria a expressao de uma forma de reorganizagao do absolutismo e do capitalismo. De todo modo, Lukács tinha muita clareza que burocracia e democracia sao opostos inconciliáveis.

3. A nova democracia

A ascensao do nazismo na Alemanha, em 1933, implicou grave perigo a todos os povos da Europa, em particular áqueles do Leste. Nao demorou muito para que a Hungria e a Austria se aproximassem da Alemanha, logo seguidas por Polonia e Itália. O enorme risco para sobrevivéncia das democracias burguesas e, mais ainda, do movimento operário e seus partidos, clamou por uma guinada

8 Lukács, op. cit., p. 118.

9 Lukács, op. cit., p. 119.

10 Lukács, op. cit., p. 138.

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na açâo política de comunistas e socialistas, que de duros contendores pela direçâo da classe operária, teriam que passar a serem aliados contra o poderoso inimigo comum. Assim que entre 1934 e 1938, amadureceu a política que ficou conhecida como de frente popular antifascista.

A amplitude e o conteúdo da frente popular, segundo G. Dimitrov, o seu mais importante formulador, seria variável e de acordo com a situaçâo concreta de cada País. Na Frente Popular, em torno ou junto com a classe operária deveriam estar o campesinato e a pequena burguesia, nos Países mais avançados, mas nos Países submetidos ao imperialismo poderia acontecer de também partes da burguesia se juntaram a luta anti-imperialista e antifascista.

Em 1937, em seguida à invasâo da China pelo Japâo e a anexaçâo da Austria pela Alemanha, em 1938, foi percebido como a ameaça fascista havia se mundializado e que a própria independencia nacional dos povos estava em grande risco. A questâo nacional voltava fortemente à baila. De tal maneira, prospectou-se um alargamento da frente popular, que passaria a ser uma frente nacional da qual, em tese, só estariam excluídas as forças fascistas e os setores das classes dominantes que lhes davam respaldo. Essa política esteve vigente no movimento comunista até 1947, e trouxe sucessos significativos.

Do ponto de vista teórico, já se começava a falar que a derrota do fascismo nâo traria de imediato o momento de implantaçâo da ditadura proletária, mas seria mais provável uma fase intermediária durante a qual o proletariado lutaria pela direçâo da vida social. Tagliatti chamou essa fase de democraciaprogressiva, segundo leitura feita da situaçâo da Espanha em guerra civil (1936). Dimitrov preferiu chamar esse período de democracia popular -- expressâo que teve maior difusâo — e Mao qualificou essa fase como nova democracia.

Foi na resistencia armada contra o nazifascismo no decorrer da guerra aberta dos anos 40 é que essa política dos comunistas apareceu como bem sucedida, tendo mesmo sido projetada em aliança entre Estados no combate ao eixo nazifascista. Quando a Alemanha atacou a URSS e, logo depois, o Japâo agrediu os EUA, do ponto de vista objetivo as alianças se explicitaram. Em tres reunioes de alto nível URSS, EUA e Grâ-Bretanha discutiram os termos da aliança e também as possibilidades do que estaria por vir com a vitória. As diferenças e reivindicaçoes de cada um foram postas à mesa em Tehran (novembro de 1943), Yalta (fevereiro de 1945) e Potsdan (julho de 1945). Ficava evidente que o destino, nâo só da Alemanha e seus aliados estariam condicionados por esses acordos, mas também de outros povos da Europa e Asia.

A resistencia dos povos e o avanço do Exercito soviético em direçâo a Berlim decidiu a derrota nazista e a libertaçâo dos povos da Europa oriental. Nesse conjunto heterogeneo de Países encontravam-se aqueles que foram aliados da Alemanha e aqueles outros que foram apenas ocupados e pisoteados pelo invasor alemâo. Em todos eles, contudo, foram formados governos de frente nacional antifascista, que fundaram regimes políticos que ficariam conhecidos como de democracia popular. Certo que conflitos internos a essas frentes políticas ocorreram em diferentes medidas. A avaliaçâo de cada caso deve passar pela posiçâo de cada País na guerra, pela política agrária e pelo peso relativo dos comunistas.

O regime protofascista da Hungria, instalado desde 1920, sobre as cinzas da república dos conselhos, foi um aliado firme da Alemanha nazista, tendo mesmo participado do ataque a URSS. Diante do avanço das tropas soviéticas e o recuo da Alemanha, o regime do Almirante Horthy ruiu em 1944 e foi logo substituído por um governo provisório de coalizâo antifascista. A dialética positiva entre os partidos da Frente nacional possibilitou que essa governasse e implantasse uma agenda de reformas

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substantivas em todas as áreas da vida social. O PCH era minoritário dentro da Frente, mas a política de busca de consensos e a presenga do exercito soviético fazia com que a prioridade fosse a erradicagao dos fundamentos económicos e sociais do fascismo, assim como da ideologia fascista. Era o que os comunistas chamavam nova democracia, a via húngara ao socialismo. Com suas particularidades, era essa a rota que seguiam todos os países da Europa oriental.

Lukacs, que passara 15 anos na URSS, retorna a Hungria em agosto de 1945, cheio de entusiasmo para contribuir com o reerguimento do País. Como membro do Parlamento e do conselho da Frente, participa com afinco da luta cultural e ideológica e na discussao sobre o conteúdo e significado da nova democracia. Em 1946 profere uma conferencia em Genebra, a qual seria publicada na Hungria logo depois com o título de Concepgao aristocrática e concepfao democrática do mundo. Esse texto, carregado de otimismo com a esperada manutengao da coalizao entre URSS — EUA — Gra Bretanha, trata das possibilidades de uma progressao democrática que abrisse as portas do socialismo.

Quando pensava em nova democracia na Europa, em 1946, Lukács nao excluía Franga e Itália, países nos quais a classe operária e os comunistas haviam lutado na linha de frente contra o fascismo e ganhado um peso ponderável na vida política do pós-guerra, com participagao mesmo nos governos de unidade nacional. Mas a ideologia fascista estava presente em toda parte e "o fascismo, como concepgao de mundo, é, antes de mais nada, o apogeu qualitativo de teorias irracionalistas no domínio da epistemologia e aristocráticas no plano social e moral - (...)".11

Somente com a erradicagao das raízes espirituais e morais do fascismo é que se estabelecem as condigoes para a democracia.

"Só se pode falar de democracia quando desaparecerem todas as formas de dependéncia do homem frente ao homem, de desigualdade social e de auséncia de liberdade. Trata-se, pois, de alcangar uma liberdade e uma igualdade sem discriminagao de condigao económica, nacionalidade, raga, sexo". 12

A nova democracia é muito diferente da democracia formalizada pelo liberalismo, pois essa mutila a individualidade. A cisao entre homem e cidadao, mutila o individuo, esvazia o cidadao, de modo que "a democracia formal do liberalismo privatiza o individuo". 13

Lukács anota ainda como a crise do liberalismo é um momento da decadéncia ideológica da burguesia, a qual dá vazao ao pessimismo e a irrupgao do irracionalismo, do racismo. A derrota militar do fascismo na guerra foi de suma importáncia, sem dúvida, mas permanecem vivas as suas concepgoes ideológicas, que, a qualquer momento podem de novo irromper na cena histórica. Daí a enorme importáncia da luta ideológica contra o fascismo e seus eventuais rebentos.

A crise da democracia liberal é que possibilitou a ascensao do fascismo, mas teria sido entre os povos de maior "espirito democrático" que a resistencia foi maior (Lukács cita a URSS, a Iugoslávia e a Franga como exemplos). A constituigao de uma visao democrática do mundo é agao política e ideológica imprescindível para que a fascismo nao possa se manifestar novamente, ainda que em outro formato, atualizado. No entanto, essa reforma ideológica só poderá acontecer se o conteúdo social

11 Gyorgy Lukàcs, "Concepçao aristocrática e concepçao democrática do mundo", O jovem Marx e outros escritos de filosofía, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009, p. 25.

12 Lukács, op. cit., p. 28.

13 Lukács, op. cit., p. 30.

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existente na Franga de 1793 e na Rússia de 1917, novamente se manifestar. Essas seriam algumas das condigoes para que a nova democracia viesse a florescer. Mas como isso pode se processar? A resposta de Lukacs "é na medida em que os homens combatem pela nova democracia, na medida em que a constroem, que desperta neles o espírito cidadáo; transformada a sua concepgáo de mundo, entram na luta pelas instituigoes da nova democracia".14

Lukács desde logo vincula a democracia (e o socialismo) ao cotidiano. A democracia deve ser parte integrante da vida social, de todas as relagoes sociais. Só assim o homem pode se sentir parte do genero humano. Lukacs afirma que para se chegar a esse momento deve-se estimular s elementos de democracia direta, pois é "precisamente o fato de que todas as questoes concretas da vida cotidiana, enquanto questoes da vida pública, interessam e dinamizam as massas mais amplas demonstra que a sua insergáo na democracia proletária é um processo consciente". 15

Na Europa, naquele imediato pós-guerra a luta estaria entre a construgáo de uma nova democracia como modo de vida ou de uma democracia apenas como forma jurídica. Se surgiria uma democracia proletária ou uma democracia burguesa. A resposta para o dilema está pois na evidencia de qual classe dirigiria o processo social.

A reflexáo de Lukács sobre a questáo da democracia foi retomada em dezembro de 1947, em uma conferencia proferida em Miláo, Itália, e que trazia o nome de As tarefas da filosofía marxista na nova democracia. Em setembro deste mesmo ano havia sido fundado o Kominform — Comite Comunista de Informagáo, que era já um indício da eclosáo da guerra fria, seguido pelo conflito entre URSS e Iugoslávia. Por ora, Lukács ainda tinha toda a liberdade de expor as ideias sobre a nova democracia, o possível caminho socialista para a Hungria e toda a Europa oriental, guardada toda a sua diversidade nacional.

Essa conferencia retoma alguns temas tratados na exposigáo precedente como a necessária crítica da democracia burguesa com a análise da relagáo dialética entre forma e conteúdo. A recomposigáo apenas da forma jurídica democrática implica a recomposigáo da democracia burguesa, que náo passa de uma forma de ditadura da burguesia. Seria preciso ter em conta que a nova democracia poderia ser uma possibilidade de se chegar á ditadura do proletariado, da qual emerge a democracia proletária.

Nesse momento, Lukács já percebe que a estrada da nova democracia só permanece aberta para alguns Países da Europa, considerada a expulsáo dos comunistas dos governos de Franga e Itália. A nova democracia náo pode ser uma forma que preserve privilégios,

"mas que ofere^a ao povo trabalhador a possibilidade de constituir uma sociedade em que a propriedade privada capitalista subsista — submetida a limitagoes, controles, etc. --, na qual, todavia, os interesses vitais, materiais e culturais do povo trabalhador, sejam predominantes e decisivos".16

Lukacs entende que "se vislumbrarmos um caminho para o socialismo, novo, mais lento e que talvez exija menos sacrificios, devemos aproveitá-lo e percorre-lo — desde que o avaliemos

14 Lukács, op. cit., p. 50.

15 Lukács, op. cit., p. 50.

16 Georgy Lukacs. "As tarefas de filosofia marxista na nova democracia", O jovem Marx e outros escritos de filosofa, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009, p. 56.

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permanentemente com o metro da crítica de Lênin, (...)". Mas esse caminho terá que "fazer triunfar a superioridade do conteúdo sobre a forma, ou seja, afirmar, teórica e praticamente, a prioridade do conteúdo político-social em relaçâo à forma jurídica".17

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Esse caminho nao é tâo simples assim, pois o fato de talvez ainda predominar na nova democracia a concepçao burguesa de prioridade da forma jurídica, as massas populares podem se deixar levar. O significado disso é que a direçao política e ideológica da nova democracia encontra-se em disputa e na dependencia de qual classe fundamental prevalecer, a nova democracia pode avançar para a democracia proletária ou regredir para uma democracia formal liberal burguesa, quando nao para alguma variante de restauraçao do fascismo. Dessas possibilidades em aberto, a fim de que a nova democracia se encaminhe para o socialismo, para que seja uma aproximaçao do socialismo, é necessário encontrar uma determinaçao dialética da totalidade social a fim de que se possa priorizar o conteúdo. Ora, a totalidade é composta por forças antagónicas em luta e também por totalidades parciais subordinadas, de modo que a totalidade social é relativa.

A importancia da assimilaçao dessa concepçao filosófica fica comprovada no entendimento do que seja o plano. A correlaçao de forças é que determina a orientaçao do plano, se atenderá ou nao as demandas da classe trabalhadora. Assim que

"para as novas democracias se coloca o problema económico, inteiramente novo, de provocar, no movimento espontaneo do sistema capitalista ainda vigente, através do jogo da dominaçao real de posiçôes económicas determinadas, as modificaçôes de orientaçao desejadas". 18

É já bastante evidente que para Lukàcs, democracia significa protagonismo consciente e organizado das massas, mas nao apenas com interferencia no plano económico, mas no conjunto da vida social. O plano económico é uma premissa indispensável, mas o conceito de plano se espraia também para o movimento cultural, cujo objetivo inicial é a elevaçao do nível cultural dos trabalhadores da cidade e do campo, a fim de que se tornem mais conscientes da sua posiçao social. Por suposto que a nova sociedade é construida ao mesmo tempo em que a nova cultura e o "novo homem", mas também na luta contra a ideologia burguesa.

A luta ideológica contra a tradiçao burguesa significa lutar contra o individualismo em favor de uma nova ética social. Lukàcs explicita que

"A nova ética, ao contrário [daquela burguesa] afirma em primeiro lugar que o homem social (o Mitmensch) nao constituí um limite para os outros, mas, ao contrário, é um fator essencial da sua liberdade. O individuo só pode ser verdadeiramente livre numa sociedade livre."19

É essa uma condiçao para que os homens se sintam plenamente como parte do genero humano, como responsáveis pelo destino da humanidade. Esse sentimento e essa convicçao devem se expressar na práxis da vida cotidiana, como ética, portanto. Nessa concepçao a formaçao humana

17 Lukács, op. cit. p. 57.

18 Lukács, op. cit., p. 60.

19 Lukács, op. cit., p. 75

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finalmente imbrica a formaçâo individual com a formaçâo genérica do homem. Nâo só a ideologia liberal é incapaz de cumprir essa finalidade humanizadora, mas tampouco a ideologia religiosa. A difusâo da práxis histórica no cotidiano, que busca a emancipaçâo, é expressâo da consciência social.

Lukàcs destaca ainda a questâo nacional como vinculada ao problema da democracia. Na época burguesa, na realidade, as naçoes estâo divididas em "duas naçoes", na qual predomina a "naçào" da classe dominante. No pós-guerra era particularmente evidente que a naçâo plebeia era a verdadeira naçâo, a que mais defendeu os interesses nacionais frente a agressâo fascista interna e externa. Mais ainda, foi a naçâo plebeia que vinculou a existencia plena da naçâo a existencia de uma plena democracia e oferece assim também a possibilidade do pleno florescimento da cultura nacional. Na visâo de Lukàcs, a nova democracia que assim surgia tinha condiçoes favoráveis para avançar para o socialismo e construir uma relaçâo solidária entre as naçoes que ingressassem essa trilha.

Entre 1944 e 1947, pareceu a muitos, nâo apenas a Lukàcs, que estaria efetivamente aberto o caminho para uma nova democracia que servisse como aproximaçâo rumo a democracia socialista. De fato, o que nessas conferencias Lukàcs qualifica como nova democracia foi mais geralmente chamada de democracia popular, imagem derivada da vitória da frente popular contra o fascismo, tal como pensado ainda no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935. Desde cedo se percebeu que essas experiencias de nova democracia tendiam a se restringir a Europa oriental, a ampla zona libertada com o fundamental auxílio do exercito soviético.

Era bem conhecida a diversidade entre aqueles Países, que a correlaçâo entre as forças sociais e políticas variavam bastante, mas se contava muito que a colaboraçâo entre os povos e governos contribuiria para o avanço da nova democracia no seu fundamento nacional popular. Um exito maior se aguardava onde o partido comunista fosse mais forte, como nos casos de Checoslováquia e Iugoslávia. Mais ou menos difícil em outros Países. No entanto, talvez mais do que a correlaçâo das forças nacionais a relaçâo entre as naçoes vitoriosas na guerra é que determinaria o destino dessas experiencias históricas promissoras, como pensavam muitos dirigentes políticos e intelectuais como Lukàcs.

Já em 1947, o chamado Plano Marshall de empréstimos para a reconstruçâo da Europa por parte dos Estados Unidos, desdobrado, em março, na "doutrina Truman", foi a chave que rompeu a aliança com a URSS. O resultado político foi que os comunistas foram postos para fora dos governos de unidade nacional presentes na Europa ocidental, com destaque para França e Itália, transformados em inimigos internos. Da outra parte, na Europa oriental foi os partidos burgueses, pequeno burgueses, camponeses é que foram afastados dos governos, num processo bastante dramático.

O Kominform foi articulado em setembro de 1947, com o objetivo claro de impor a todos os países da Europa oriental as diretrizes de economia política já vigentes na URSS. As implicaçoes seriam centralizaçâo do poder político no partido comunista, cuja direçâo estaria de pleno acordo em aprofundar as nacionalizaçoes, investir na indústria pesada e de defesa e coletivizar a terra. A resistencia dos camponeses foi reprimida, assim como foi a pequena indústria privada. Em todos os Estados a nova linha saiu vitoriosa, com exceçâo da Iugoslávia. Na verdade, o contencioso URSS e Iugoslávia foi útil na luta contra aqueles que defendiam a linha anterior da nova democracia, como pensada por Lukàcs e outros. Agora todos que mantinham alguma simpatia pela Iugoslávia passavam a serem acusados de "titoístas".

Em junho de 1948, a Iugoslávia foi excluída do Kominform e a disputa pela orientaçâo política a ser impressa nas novas democracias ou democracias populares se aprofundou. No caso da Hungria, a

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direçao de László Raijk, que tinha em Imre Nagy, um de seus mais importantes colaboradores, começou a ser fortemente contestada até se chegar à absurda acusaçao de traiçao. Processado, Raijk foi condenado à morte em outubro de 1949. Nesse momento já havia ocorrido a "fusao" do PCH com o partido socialdemocrata, com o novo nome de Partido Operário. Em paralelo, Lukács foi vitima de dura perseguiçao ideológica, com acusaçoes das mais estapafúrdias, que fecharam as suas possibilidades de expressao. O silencio de Lukacs durou até que, em 1953, com a morte de Stalin, a oposiçao à direçao de Matias Rakosi pudesse ser contestada e se abrisse um período de grave crise política, que durou até 1957.

Observou-se na Hungria, depois de 1948 um processo que ao promover a coletivizaçao do campo, a industrializaçao e a burocratizaçao de todas as instancias do Estado, formou um socialismo de Estado, de caráter acentuadamente repressivo. Rompeu-se a sempre titubeante aliança operário camponesa e o descontentamente grassou mesmo na classe operária. Repetiram-se os erros mais grosseiros de quando da revoluçao de 1919.

Com a morte de Stalin, em março de 1953, teve início mudanças políticas na URSS e em quase toda a Europa oriental. Na Hungria, para se preservar no poder, Rakosi solicitou que Nagy, a mais importante expressao da oposiçao dentro do partido, voltasse ao governo. O compromisso persistiu até abril de 1955, quando Nagy foi novamente afastado e novas medidas repressivas forma tomadas. Uma rebeliao das massas contra a burocracia do partido e do Estado estava germinando enquanto que o imperialismo investia numa aberta contrarrevoluçao.

O XX congresso do PCUS, em fevereiro de 1956, com as denúncias relativas ao período stalineano, deu impulso ao processo de democratizaçao, em particular na Hungria e na Polónia. A crise húngara foi muito profunda tanto que o partido chegou a dissolver-se e as portas para uma caçada aos comunistas se abriram para a direita fascista. Nagy, mais uma vez retornado ao governo, pensava resgatar a experiencia da nova democracia, de 1945-1947, mas a sua proposta de sair do Pacto de Varsóvia e fazer da Hungria um País neutro, como a Austria, foi um desastre, porquanto, no mesmo momento, eclodia a crise do Suez e Israel atacava o Egito. Nessa circunstancia aconteceu a intervençao militar soviética, que reestabeleceu a ordem: forma abafadas tanto a contrarrevoluçao como a revoluçao democrática, que via ressurgir os conselhos operários.

Lukács esteve envolvido na luta pela democratizaçao como um tribuno do povo, mas as exacerbadas contradiçoes postas na situaçao internacional, a resistencia da burocracia e os erros táticos de Nagy, levaram-no mais uma vez ao isolamento e por fim a deportaçao para a Romenia, onde permaneceu até abril de 1957, quando o novo governo, encabeçado por Janos Kadar, autorizou a sua volta. Em junho forma-se um novo partido de governo, o Partido Operário Socialista da Hungria, do qual Lukács ficou apartado e continuou a ser vítima de críticas das mais fortes. Sem se abater, deu continuidade ao seu projeto filosófico de uma Estética marxista.

4. A democratizaçao socialista.

Em 1962, logo após o XXII congresso do PCUS, que retomou a questao da época de Stalin, Lukács foi inquirido pela revista italiana Nuovi Argomenti a se pronunciar sobre o seu entendimento do que fosse o stalinismo. Lukács se expressou em longa carta dirigida ao editor da revista.

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Desde o XX congresso do PCUS, a questâo se colocava em torno do problema do culto à personalidade de Stalin, em torno do problema da criaçâo de um mito. Lukács contesta essa abordagem e subscreve uma observaçâo feita por Togliatti para quem o entendimento do que havia se passado na URSS demandava uma pesquisa apurada da história social. Lukács reafirma entâo que "o ponto de partida só poder ser a situaçâo interna e internacional em que se processou a revoluçâo prolataria russa de 1917" 20

O problema do atraso económico e cultural era sabidamente difícil de ser contornado, mas se agravou ainda mais com o isolamento da Rússia revolucionária. Lenin sabia das dificuldades em se desenvolver a democracia proletária frente a um Estado burocratizado herdado do czarismo. Entre as alternativas postas em seguida à morte de Lenin, Lukács descarta as teses de Trotsky como oscilantes entre a aventura e a capitulaçâo. Quanto a Bukhárin observa apenas que esse pensava mal o marxismo, mas se exime de criticar a sua estratégia para a transiçâo socialista. Lukács entâo opina que a posiçâo de Stalin estava correta na disputa ocorrida em torno dos caminhos do processo de construçâo socialista. Mas reconhece que, para Stalin, vitorioso na contenda, "o problema central, que objetivamente consistia na obtençâo de um ritmo acelerado de industrializaçâo, era, com toda probabilidade, difícil de ser resolvido nos quadros da democracia proletária normal". 21

Acontece que Stalin teria passado dos limites necessários. Ora, é claro que é muito difícil definir esses limites dos quais fala Lukács. Ainda mais difícil é acompanhar como Stalin passou de alguém que seguia os passos de Lenin para alguém que elaborou uma teoria específica em oposiçâo aos "principios fundamentais do marxismo". Como questâo de método, Lukács nota a tendencia do pensamento de Stalin a abolir as mediaçoes e estabelecer relaçoes diretas entre teoria e prática, o que implicou uma radical simplificaçâo de suas formulaçoes teóricas, de maneira que um falso sistema de ideias foi erigido. 22

Lukács entende que o XXo congresso do PCUS foi um passo na superaçâo do stalinismo e o ingresso numa nova fase da transiçâo na qual as muitas deformaçoes do período anterior poderiam ser superadas, principalmente os chamados "métodos stalinistas". A expectativa de Lukács era que Kruschev realmente desse ímpeto a superaçâo dos graves problemas deixados pela época de Stalin. O mais urgente seriam "as medidas económicas e políticas que introduzem na realidade social uma democratizaçâo geral de sentido comunista".23

O ingresso de Lukács no POSH ocorreu somente em 1967, quando as reformas propostas pelo governo de Janos Kadar puderam alimentar por breve tempo as esperanças na democratizaçâo socialista da Hungria e de toda a área coberta pelas "democracias populares". Um movimento democrático mais geral acontecia também na Polónia e mais intensamente na Checoslováquia, com amplíssima participaçâo dos intelectuais. Em todos os casos aparecia como oposiçâo ao Socialismo burocrático de Estado.

No decorrer dos anos 60, Lukács concedeu uma série de esclarecedoras entrevistas, uma das quais se destaca por ter sido concedida a pedido da direçâo do POSH e feita por Ferenc Féher, em julho de 1968. O tema inicial da conversaçâo foi a figura do dirigente comunista italiano Palmiro

20 Gyorgy Lukács, Carta sobre o Estalinismo, Lisboa, Seara Nova, 1978, p. 17.

21 Lukács, op. cit., p.20.

22 Lukács, op. cit., p. 27-34.

23 Lukács, op. cit. p. 37.

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Togliatti, pelo qual Lukács tinha muito respeito, assim como pelo PCI (assim como por Tito). A rigor, Lukács observava em Togliatti algo presente também em Stalin, que era uma enorme capacidade de movimento tático sem uma teoria e estratégia da qual derivasse a tática.

Em relaçao à Hungria (algo que pode ser estendido para a URSS e toda a Europa oriental) Lukács indica como nao há qualquer hegemonia, cujo indício maior é a afastamento entre partido e classe. Mesmo com algum ceticismo, Lukács ainda acreditava que se poderia democratizar o socialismo burocrático, que preservava ainda muito dos aspectos do stalinismo. Chamava atençao ainda para o agravante de que "com esse marxismo que temos jamais conquistaremos a hegemonia, porque esse marxismo é a pior espécie de manipulaçao das coisas" 24 e que "nao digamos que nao há mais o stalinismo, quando existe um sistema desses, influente na vida de todo o país e que milhares e milhares de homens agem em beneficio de tal sistema". 25

Numa situaçao como essa seria concebível a democratizaçao socialista? Lukács pensa de início em liberdade de crítica e de expressao, o que alcança escritores, jornalistas, artistas. Em seguida observa a necessidade de a classe operária participar efetivamente da concepçao e da execuçao do plano económico social, que é de caráter estratégico e deslinda o objetivo do Estado socialista. A democracia no local de trabalho seria o modo de confrontar a apatia existente entre os operários, que se viam apenas como executores de tarefas definidas alhures. Mas, de maneira mais geral, entende que a democratizaçao deve ocorrer e se fundamentar na vida cotidiana, a partir de decisoes coletivas tomadas sobre questoes do cotidiano, como educaçao, saúde, transporte, abastecimento, limpeza pública, etc. Lukács pensa entao que "se a esse nível surge a democracia, se estende lentamente para o alto, e lentamente para o alto fará valer a própria influencia, desde que acima existam aqueles que queiram assumir esse ponto de vista".26 A possibilidade da democratizaçao socialista, como imagina Lukács está entao condicionada a uma democratizaçao também do partido dirigente.

A experiencia democratizante da Checoslováquia, no decorrer de 1968, parecia seguir alguns dos passos indicados por Lukács, mas foi interrompida com a intervençao das tropas do Pacto de Varsóvia, no mes de agosto. Ainda naquele segundo semestre, Lukács interrompeu a pesquisa sobre a ontologia do ser social para escrever um ensaio sobre a questao da democracia, que ganhou o nome de Democratizaçao hoje e amanha, publicado pela primeira vez apenas em 1985, na Hungria, mas no original alemao. Lukács nao acreditava que esse texto viesse a ser publicado na Hungria e por isso pediu que a primeira ediçao fosse apresentada na Itália, cuja ediçao, de 1987, trouxe o nome de L'Uomo e la democrazia. A ediçao brasileira é de 2008 e nomeou o texto como Oprocesso de democratizaçao.

Lukács começa por apresentar os pressupostos metodológicos da sua exposiçao e considera

que

"toda formaçao económica, de um ponto de vista ontológico, é algo dotado de uma legalidade necessária e, ao mesmo tempo, de um ser-precisamente-assim histórico; portanto, de acordo com o seu ser social, formas superestruturais — como, em nosso caso, a democracia (ou melhor, a democratizaçao, dado que também nesse caso segundo uma abordagem ontológica trata-se sobretudo de um processo e nao de uma situaçao estática) de um ponto de vista histórico, como concreta força política

24 Lukács, "Intervista sconosciuta del 1968", Lukács parla: interviste (1963-1971), Milano, Edizioni Punto Rosso, 2019, p.72

25 Lukács, op. cit., p. 87

26 Lukács, op. cit., p. 93.

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ordenadora daquela particular formagao económica sobre cujo terreno ela nasce, opera, torna-se problemática e desaparece." 27

Assim é que a forma política da democracia, quando existe, corresponde a determinada formagao económica, ou ainda, a democracia é determinada por seus fundamentos económicos sociais. A democracia da polis grega só pode ser entendida se for considerado o seu fundamento escravista. A democracia da época burguesa, por sua vez, só é compreensível se observado que só pode existir legitimada pela existencia da propriedade privada. A separagao entre a sociedade civil -- o conjunto de interesses materiais privados -- do Estado político, o homem económico real do cidadao ideal, sao elementos próprios e incontornáveis da democracia burguesa. Apenas mudangas económicas significativas induzidas por um movimento popular é que podem induzir mudangas na relagao entre base e superestrutura 'ideal'.

Na democracia burguesa "a realizagao na sociedade do 'idealismo' da superestrutura, nos termos mais puros possíveis, é o meio mais eficaz para dar lugar a uma livre manifestagao das tendencias materiais egoístas na vida social", assim como nao é casual

"o fato de que — para voltarmos ao nosso verdadeiro problema — o mais puro e explícito 'idealismo' abstrato das formas estatais de governo seja o instrumento mais apropriado para afirmar sem obstáculos os interesses individuais do egoísmo capitalista sob a máscara de interesses ideais de natureza universal". 28

De fato, quanto mais autónoma parece ser a representagao política, mais pode implantar as condigoes que interessam aos grupos capitalistas dominantes. A tendencia da democratizagao burguesa, no entanto, é a dos interesses privados se apropriarem da esfera ideal da cidadania e assim expor a contradigao insanável entre os interesses privados egoísticos e os interesses da generalidade do homem. De antemao Lukács conclui que a democracia burguesa nao pode ser uma real alternativa para a superagao do stalinismo ainda vigente na URSS e nas democracias populares da Europa oriental.

Para Lukács, "qualquer tentativa de colocar em prática essa alternativa democrático-burguesa conduziria a liquidagao do socialismo e, com enorme probabilidade, da própria democracia" e pensar a democratizagao socialista como a única e real alternativa implica entender que "o ser social efetivo do socialismo atual [1968] é aquele conjunto de instituigoes sociais, de tendencias, de teorias, de táticas, etc. que emergiram da crise do período staliniano". 29

Mais uma vez Lukács se ampara nas formulagoes de Lenin para aventar a tese plausível de que o socialismo fosse uma formagao social económica particular. Nessa trilha, Lukács afirma que

"o primeiro grande ato da passagem ao socialismo, a socializagao dos meios de produgao, sua concentragao nas maos dos trabalhadores, tem como consequencia necessária que os atos sociais referidos a totalidade da economia devem se tornar

27 György Lukács. "O processo de democratizaçâo", Socialismo e democrati^açao: escritos políticos 1956-1971, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008, p. 85.

28 Lukács, op. cit., p. 93.

29 Lukács, op. cit., p. 106.

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também eles conscientes. Precisamente por isso os trabalhadores deixam de ser servidores para se tornarem senhores do desenvolvimento social do homem".30

Nesse momento de transigao socialista é que a questao da autoeducagao fica mais acentuada e demarca a necessidade da democracia socialista. O grupo dirigente deve ser ele mesmo educado pela classe de modo a se imunizar frente ao utopismo. O problema que se coloca efetivamente é

"qual deve ser em tal período de transigao, a relagao entre a práxis meramente económica, destinada simplesmente a eliminar o atraso, e os atos, as instituigoes, etc. diretamente orientados para o conteúdo socialista, voltados para a promogao da democracia proletária?" 31

O nexo entre o avango económico socialista e a democracia se coloca de modo mais acentuado na medida em que se constitui uma teleologia social unitária voltada para a construgao do comunismo, do encontro do homem com a sua generalidade e a sua completa libertagao. Lukács anota que para Lenin,

"o socialismo era uma comunidade social, uma comunidade socialmente consciente (conscientemente criada) de todos os trabalhadores, com o objetivo de elevar, através do próprio trabalho, das próprias experiencias, sua existencia material e espiritual ao nível de uma agao em comum dotada de sentido". 32

Para que se constitua essa comunidade social, a dialética entre base material e base social nao pode ser a mesma da democracia burguesa, nao pode haver a contradigao entre interesses materiais e a representagao ideal no Estado. A socializagao da produgao e a democracia socialista tem uma relagao concreta nao mistificada e

"por isso, a tarefa da democracia socialista é penetrar realmente na inteira vida material de todos os homens, desde o cotidiano até as questoes decisivas da sociedade; é dar expressao á sua sociabilidade enquanto produto da atividade pessoal de todos os homens".33

A realizagao do socialismo como democracia da vida cotidiana demanda fundamentalmente uma profunda mudanga de hábito, de costume, dos homens, um acerto de contas com a tradigao cultural e uma autoeducagao para a nova vida. Essa concepgao de democratizagao socialista, na leitura da Lukács, Lenin a tinha com clareza, assim como tinha claro os terríveis limites impostos pela situagao concreta da Rússia revolucionária. Os limites eram produtos da agao destrutiva da guerra, mas também da burocratizagao que a guerra civil e anti-imperialista havia resgatado. Mesmo assim, Lenin refletiu sobre políticas que fizessem com que a classe operária resistisse ao Estado que se burocratizava e que

30 Lukács, op. cit., p. 111.

31 Lukács, op. cit., p. 113.

32 Lukács, op. cit., p. 114.

33 Lukács, op. cit. p. 117.

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também preparasse o campesinato para se enderegar ao socialismo, como a proposta sobre as cooperativas.

Para o conhecimento das origens daquilo que se chamou de stalinismo, Lukács sabia como era essencial o conhecimento da história social da Rússia dos anos 20. No entanto, essa história estava ainda longe de estar disponível e restava como uma grande tarefa a ser realizada. Por essa razao é que Lukács teve que se limitar a analisar a vitória de Stalin na disputa pelo projeto socialista e as suas consequencias decisivas basicamente em torno de questoes teórico-metodológicas. O problema passava a ser a configuragao de um socialismo burocrático (um pseudo socialismo) e como a partir dele seria possível o resgate da democratizagao socialista.

Lukács defende a existencia de uma descontinuidade teórico-prática entre Lenin e Stálin, que, no limite, chegou até a ruptura com aspectos importantes do marxismo. Uma característica inicial para a qual Lukács chama atengao é o fetiche da continuidade e o desaparecimento da perspectiva histórica e estratégica, com o que passou a prevalecer a priorizagao da tática na luta política. Nao só Stalin, mas o conjunto da diregao bolchevique desconsiderou a necessidade de desenvolver os germens de democracia socialista existentes ainda no momento da morte de Lenin (1924). A disputa pelos caminhos a serem seguidos pela URSS girou em torno apenas dos problemas económicos e as teses defendidas tinham pouca sustentagao teórica. Nessa contenda Stálin apareceu como o melhor tático a pode erigir um poder autocrático a partir de 1929.

Na verdade, sempre segundo Lukács, a particularizagao da economia como ciencia autónoma implica a perda de vínculo com a perspectiva histórica de emancipagao do genero humano e passa a se prestar a manipulagoes táticas. Assim que "a conversao da economia em ciencia particular, portanto, é a base metodológica de seu uso manipulatório". 34

Essa operagao de cisao da totalidade, na prática, retira de pauta a questao do protagonismo dos trabalhadores, da sua autoeducagao, da sua capacidade de oferecer solugoes aos problemas cotidianos, o que se resume no esmagamento da democracia socialista, cuja expressao maior era os conselhos (soviets). Em tese, para Lukács, nos anos vinte,

"a verdadeira alternativa histórica que entao se colocava era a seguinte: seria possível (e de que modo) associar o desenvolvimento económico (um problema incontornável para o socialismo, já que esse desenvolvimento constitui sua base objetiva) com a construgao das precondigoes sociais de uma democracia socialista; ou, ao contrário, tratava-se, em nome do mero progresso económico, de colocar essa associagao em segundo plano, ou mesmo deixá-la inteiramente de lado?" 35

Acontece que, na leitura que faz Lukács, a primeira alternativa nem foi considerada por qualquer dos contendores, já que estavam todos imbuídos da visao economicista e nao dialética de um "marxismo vulgar". Na URSS até a práxis política e administrativa acabou por se burocratizar na medida em que a democracia socialista nao encontrava passagem. No entanto, mesmo nessas condigoes a URSS conseguiu desenvolver as bases objetivas do socialismo, mas deixou em aberto a possibilidade ou nao de empreender uma democratizagao socialista.

34 Lukács, op. cit., p. 135.

35 Lukács, op. cit., p. 147.

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As reformas económicas que se fizeram necessárias desde fins dos anos 50, poderiam abrir a possibilidade da democratizaçao, mas ao constatar que os conselhos nao apresentavam condiçoes para iniciar esse processo, Lukács localiza numa possível pressao da "opiniao pública" o motor que desencadearia a movimento. De fato, afirma Lukács que "A mobilizaçao dessa opiniao pública, hoje — na ótica da dinámica social — predominantemente 'muda' e 'clandestina', em uma práxis pública sistemática, me parece o primeiro passo em direçao a uma democracia socialista". 36

Essa "opiniao pública" poderia servir de respaldo a organizaçoes formadas em torno de reivindicaçoes localizadas, ligadas ao cotidiano. Todavia, para Lukács, na verdade, o decisivo seria o resgate do método dialético e da visao estratégica da política revolucionária. Essa visao precisaria se materializar no partido para efetivamente se difundir entre as massas, mudar o hábito social e estimular a democratizaçao socialista.

Nesse texto, Lukács abordou basicamente a situaçao da URSS. Alimentou boa expectativa com Kruschev, mas se decepcionou muito com Brezhnev e com a intervençao política militar na Checoslováquia. Mesmo com todas as demonstraçoes de estagnaçao, de como a burocracia era uma força reacionária, continuou a acreditar na possibilidade da democratizaçao do socialismo burocrático.

Em janeiro de 1971, a pedido da direçao do POSH, Lukács deixou-se entrevistar e permitiu que suas respostas fossem transformadas em um texto, o qual ficou conhecido como "testamento político". Para Lukàcs a Hungria avançava para ser uma democracia puramente formal, mas uma real democratizaçao exigia para começar de autonomia sindical, que tivesse como característica a obrigaçao dos dirigentes acatarem as decisoes tomadas pelos operários. Só assim se começaria a romper com a apatia e desinteresse dos operários, convencidos que estavam de que ao fim qualquer decisao seria sempre tomada pela burocracia sindical e partidária. No limite, essa situaçao pode gerar greves espontáneas. Nao há dúvida que a rebeliao operária na Polónia, no ano anterior, incidiu na reflexao de Lukács.

Junto com a democratizaçao sindical, para Lukács surge como da maior importáncia a questao da cultura operária, nao só o nível cultural geral, mas a cultura do trabalho, do conhecimento das máquinas, como foram feitas, para que servem, como podem ser melhoradas, tudo para que o resultado seja um trabalho bem feito e que ofereça autoestima e satisfaçao ao operário. Esse seria mais um ponto a ser alcançado, pois,

"Ora, desde os tempos do stalinismo, quando se colocava a quantidade produtiva do trabalho à frente de qualquer outro objetivo, desapareceu o conceito de trabalho bem feito; a honorabilidade devida ao bom trabalho foi amesquinhada na fábrica". 37

Essa situaçao, na verdade, na avaliaçao de Lukács, perdurava na Hungria e reforçava na vida cotidiana da classe operária hábitos adversos ao socialismo, como o ímpeto a valorizar bem de consumo. Se a valorizaçao do homem passasse pelo trabalho bem feito, poder-se-ia criar uma hierarquia de novo tipo, fundada na cultura do trabalho, no trabalho fundado no conhecimento e na criaçao.

36 Lukács, op. cit., p. 176.

37 György Lukács, "Testamento Político" 2008, p. 222.

Socialismo e democratizaçao: Textos políticos 1956-1971, Rio de Janeiro, Editora UFRJ,

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Mas Lukács identifica outros problemas para que se desenvolva uma democratizaçâo socialista na Hungria. A reforma de 1867 (da qual surgiu o Império da Áustria-Hungria), a ditadura de Horthy e a ditadura stalinista de Rákosi (1948-1956), de algum modo preservaram uma tradiçào feudal na Hungria. A revoluçâo de 1919 e a experiencia da nova democracia (1945-1947) tinham condiçoes de levar a revoluçâo burguesa ao limite e abrir caminho para o desenvolvimento da democratizaçâo socialista, mas ambas as experiencias foram bloqueadas pelo inimigo de classe. Assim que a reabertura da possibilidade da democratizaçâo socialista passa pela renovaçâo do aparato partidário com o afastamento dos muitos dirigentes rakosistas que ainda prevaleciam e que temiam a organizaçâo espontánea das massas em torno de reivindicaçoes ligadas à gestâo da vida cotidiana. De fato, na democratizaçâo da vida cotidiana é que Lukàcs vislumbrava as possibilidades do socialismo, que se percebia muito difícil.

A última intervençâo pública de Lukács foi uma entrevista concedida ao francés Yves Bourdet, em abril de 1971, menos de dois meses antes que a morte o alcançasse. Lukács continuava a insistir na necessidade premente de uma reforma económica em todos os países que haviam ingressado na transiçâo socialista, mas enfatizava também que "uma real reforma económica mâo pode, todavia, realizar-se senâo por meio de uma democratizaçâo da vida cotidiana dos operários, um problema ainda nâo resolvido" 38 e que "para uma real mudança, é necessária uma verdadeira democracia proletária; com isso, entendo somente a democracia dos soviets de 1917. E nâo creio que, sem uma espécie de retorno aos soviets de 1917, seja possível cumprir reformas reais" 39

Conclusoes

Dessa exposiçâo se evidencia como Lukács tinha em Marx, Engels e principalmente Lénin as suas referencias teóricas mais decisivas. De fato, toda a reflexâo sobe a democracia e a democratizaçâo tem o seu parámetro no pensamento de Lénin. Para pensar a revoluçâo democrática na Hungria, Lukács utiliza as categorias de 'ditadura democrática', em 1929 e de 'nova democracia' ou 'democracia popular', em 1945-1947. Com a Hungria era um país de capitalismo retardatário e que trazia ainda muitos aspectos feudais, tratava-se de realizar uma revoluçâo democrática burguesa a ser conduzida pela aliança operária camponesa, mesmo que o papel dominante da burguesia persistisse por algum tempo. Essa reflexâo se inspirou no entendimento que Lénin teve na revoluçâo russa de 1905 e também no período de março a novembro de 1917, na Rússia, além da experiéncia húngara de 19181919.

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Para Lukács, o protagonismo espontáneo das massas, sua capacidade de se organizar / educar, de desenvolver a consciéncia social socialista, era condiçâo para que nâo só a revoluçâo burguesa se realizasse completamente, mas se transformasse no seu negativo, a democracia proletária. Entâo, um primeiro ponto da reflexâo de Lukács sobre a democracia diz respeito ao processo revolucionário de passagem pra a transiçâo socialista. Assim, a 'ditadura democrática' ou 'nova democracia' ou 'democracia popular' é um momento de aproximaçâo da revoluçâo socialista.

Em grande medida, o uso de Lénin é feito para se contrapor a Stalin, para fazer a crítica do stalinismo. Ainda que Lukács tenha apoiado Stalin na disputa política que percorreu o período da NEP desde a morte de Lénin até 1929, e tenha também apoiado a industrializaçâo acelerada, a realidade é que a oposiçâo ao stalinismo, do ponto de vista teórico, esteve presente desde 1929, quando da discussâo

38 Gyorgy Lukács. Lukács parla: interviste 1963-1971, Milano, Edizioni Punto Rosso, 2019, p. 183.

39 Lukács, op. cit., p. 185.

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sobre as Teses de Blum. Entao temos um Lukács sempre com Lênin, contra Stálin, contra o stalinismo, contra o burocratismo e a burocracia. O stalinismo seria uma deformaçao do socialismo ou uma involuçao inesperada da democracia popular. A crítica velada ao stalinismo apresentou-se pela primeira vez em 1940, quando Lukács se encontrava ainda na URSS. Era quase uma invocaçao para que os intelectuais, com tribunos do povo, com educadores se empenhassem na crítica concreta ao burocratismo (que o próprio Stalin dizia combater).

Após anos de silencio obrigado, a partir de 1956, Lukács, de modo intermitente, começa a expor a crítica ao stalinismo, mas ainda muito na linha do XX congresso do PCUS, mesmo que apontasse o óbvio limite da tese do "culto a personalidade". Foi depois do XXII Congresso dos comunistas soviéticos é que Lukács aprofundou a crítica e aprofundou os contatos com o PCI. Depois da sua volta ao partido húngaro, a sua critica ao stalinismo e a indicaçao das possibilidades da democratizaçao do socialismo ganhou fólego. Acontece que o muito insuficiente impulso democrático na Hungria, a intervençao da Checoslováquia e a regressao na URSS, mostraram um cenário das gigantescas dificuldades de uma empreitada como essa.

Lukács julgava que se os fundamentos económicos sociais do socialismo estavam postos e o stalinismo era uma deformaçao ou desvio, algum caminho para a democratizaçao deveria haver. Sem o resgate do protagonismo das massas trabalhadoras a democratizaçao seria impossível, mas como isso poderia acontecer?

Uma dialética democrática teria que surgir com a liberdade de expressao e organizaçao social e cultural, com a liberdade sindical. Haveria que se conquistar essa liberdade por força da 'opiniao pública', que expressaria as reivindicaçoes democráticas. A democratizaçao socialista teria encontrar o seu fundamento no local de trabalho, na gestao da fábrica, na decisao do que, para que, para quem produzir, no trabalhar bem e com satisfaçao. A democracia deveria entao se difundir para a vida cotidiana, para a gestao do espaço público, mas que alcançasse o conjunto das relaçoes sociais. Enfim, seria necessária uma profunda mudança no costume, no hábito, nas concepçoes de mundo e de vida.

A liberdade de criaçao cultural também deixaria livres os intelectuais para empreender a tarefa de superar o stalinismo e resgatar e renovar o marxismo, o qual, ao se difundir, incidiria decisivamente nessa mudança cultural indispensável ao socialismo, já que esse é precisamente a democracia da vida cotidiana. Mas esse cenário de democratizaçao só se realizaria se fosse capaz de se difundir para parcela importante do partido dirigente. Lukács alimentava também a esperança de que uma ofensiva socialista nos países de democracia burguesa do Ocidente poderia oferecer um estimulo democratizante também na Europa oriental. Sao perceptíveis algumas oscilaçoes na formulaçao de Lukács no problema da democratizaçao: oscila sobre a questao dos conselhos, que sao ignorados em várias ocasioes nas quais se manifestou, nao toca claramente na questao da dualidade de poder, nem na fase da ditadura democrática / nova democracia, nem na luta pela democratizaçao socialista, na qual a sua posiçao pode ser qualificada como reformista.

Na luta ideológica contra o stalinismo e contra as ideologias burguesas, Lukács, afirma categoricamente que a saída do stalinismo nao poderia ser uma democracia liberal burguesa, pois esse seria o fim do socialismo sem que a democracia se realizasse. O mais provável, pode-se deduzir, seria a restauraçao de alguma forma de fascismo. Como se sabe, a democratizaçao socialista ficou limitada a alguns tímidos passos em alguns países de democracia popular. Criou-se uma 'opiniao pública' democrática, houve oposiçao dos intelectuais, mas o protagonismo das massas trabalhadoras com a clara e resoluta vontade de democratizar e mesmo aprofundar o socialismo nao aconteceu. As

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burocracias defenderam as suas posiçoes, as fraçoes partidárias interessadas em conduzir a democratizaçâo nâo tinham influencia de massa e nem clareza teórica e estratégica. O resultado é que em 1989-1991 todas as democracias populares da Europa oriental e a própria URSS vieram abaixo e o que se viu foi a instauraçâo de um capitalismo periférico com variantes de fascismo liberal. A incidéncia da ideologia e dos recursos imperialistas contribuiu para a derrocada do socialismo burocrático de Estado e também para a conversâo colonial da maior parte daqueles povos.

Bibliografía

a) Escritos de Lukács

LUKÁCS, György, Escritos tempranos (1919-1929), Buenos Aires, Ediciones El Cielo por Asalto,

2005.

LUKÁCS, György. Carta sobre o Estalinismo, Lisboa, Seara Nova, 1978. LUKÁCS, György. L'uomo e la democracia, Roma, Lucarini, 1987

LUKÁCS, György. Lukács parla: Interviste 1963-1971, Milano, Edizioni Punto Rosso, 2019. LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura, Sao Paulo, Editora Expressáo Popular, 2010. LUKACS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofía, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2009. LUKÁCS, György. Socialismo e democratizaçâo: Escritos políticos 1956-1971, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008.

b) bibliografía auxiliar

FEJTÖ, François. Storia delle démocratiepopolari: l'era di Stalin. Milano, Editori Bompiani, 1977. FREDERICO, Celso. Lukács: um clássico do século XX. Sao Paulo, Editora Moderna, 1997. GUERRA, Adriano. Gli anni del Cominform. Milano, Mazzotta Editore, 1977. KONDER, Leandro. Lukács. Porto Alegre, L&PM, 1980.

NETTO, José Paulo. Lukács: oguerreiro sem repouso. Sao Paulo, Editora Brasiliense, 1983.

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