Научная статья на тему 'Ser-outra: algumas inversões teóricas sob uma perspectiva feminista e decolonial'

Ser-outra: algumas inversões teóricas sob uma perspectiva feminista e decolonial Текст научной статьи по специальности «Экономика и бизнес»

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Ser-outra / marxismo / patriarcado / mulheres / teoria do valor / acumulação capitalista / Being-other-woman / Marxism / patriarchy / women / value theory / capitalist accumulation

Аннотация научной статьи по экономике и бизнесу, автор научной работы — Tábata Berg

O objetivo deste artigo é lançar uma perspectiva feminista decolonial à teoria marxista da valorização e acumulação de capital, deslocando o acento sobre a relação capital/trabalho [assalariado] para as formas de exploração e opressão laborais nãoassalariadas, nomeadamente, àquelas que se desenvolveram inerentes ao patriarcado racista, pela imbricação entre colonialismo, patriarcado e escravidão, cujo rascunho da categoria que estou definindo por ser-outra articula.

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Being-another: some theoretical inversions from a feminist and decolonial perspective

The aim of this article is to launch a decolonial feminist perspective to the Marxist theory of value and capital accumulation, shifting the emphasis on the capital / labor [wage earner] relationship to the forms of non-wage labor exploitation and oppression, namely, those that developed inherent to racist patriarchy, due to the overlap between colonialism, patriarchy and slavery, whose draft of the category I am defining by being-other-woman articulate.

Текст научной работы на тему «Ser-outra: algumas inversões teóricas sob uma perspectiva feminista e decolonial»

50, enero 2021:1-19

Ser-outra: algumas inversoes teóricas sob uma perspectiva feminista e decolonial

Being-another: some theoretical inversions from a feminist and decolonial perspective

Tábata Berg*

Resumo: O objetivo deste artigo é lanzar uma perspectiva feminista decolonial a teoria marxista da valorizado e acumulagao de capital, deslocando o acento sobre a relagao capital/trabalho [assalariado] para as formas de exploragao e opressao laborais nao-assalariadas, nomeadamente, aquelas que se desenvolveram inerentes ao patriarcado racista, pela imbricagao entre colonialismo, patriarcado e escravidao, cujo rascunho da categoria que estou definindo por ser-outra articula.

Palavras-chave: Ser-outra; marxismo; patriarcado; mulheres; teoria do valor; acumulagao capitalista.

Abstract: The aim of this article is to launch a decolonial feminist perspective to the Marxist theory of value and capital accumulation, shifting the emphasis on the capital / labor [wage earner] relationship to the forms of non-wage labor exploitation and oppression, namely, those that developed inherent to racist patriarchy, due to the overlap between colonialism, patriarchy and slavery, whose draft of the category I am defining by being-other-woman articulate.

Keywords: Being-other-woman; Marxism; patriarchy; women; value theory; capitalist accumulation

Recibido: 9 noviembre 2020 Aceptado: 4 enero 2021

nuestro norte es el sur Gabriel García Torres, 1943

Ser-outra1 é uma categoria que venho desenvolvendo no intuito de contribuir a compreensao do sistema capitalista a partir de uma visada feminista e decolonial. O capital, embora seja impessoal, ao longo da historia, tem mantido identidades de genero e raga bastante fixas, neste sentido, proponho compreende-lo a partir dessas alteridades que, embora subalternas, garantem seu funcionamento, pois

* Brasileira. Doutora pelo Programa de pós-graduagao em Sociología IFCH/UNICAMP. Professora pelo Departamento de Ciencias Sociais DCS/UFV, pesquisadora no Grupo de Pesquisas Trabalho e suas Metamorfoses GPTM/UNICAMP. Mae do Antonio desde 2016. tabataberg@yahoo.com.br

1 Desenvolvo os fundamentos teóricos dessa categoria em Fa%er-se humana: o ser socialá luz da ser-outra (2019).

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ele necessita, ao custo de extinguir-se, de um outro diferente ontologicamente, na forma de ser, de si mesmo, tanto para expropriá-lo, quanto para realizar-se e, somente, assim, ampliar-se. A esse outro plural, estou conceituando de ser-outra. Pretendo lanzar mao a uma teoria invertida, no sentido evocado pelo artista Joaquín Torres García (1943), partindo da escuta das vozes periféricas e feministas, para seguir radicalizando essa questao que, embora marginal, nao esteve ausente das preocupares do marxismo em sua diversidade.

Compreender, cada vez mais, a diversidade das formas de estranhamento (RANIERI, 2001), a ser-outra em sua multiplicidade, possibilita seguir esmiugando o modus operandi do capitalismo, sua coerencia interna e suas contradices, ao mesmo tempo em que compreender as resistencias que lhe fazem constante oposigao, nos oferece subsidios imaginativos com os quais podemos seguir construindo as possibilidades concretas de sua superagao.

Nesse artigo, a categoria patriarcado terá lugar de centralidade para a compreensao do processo de estruturagao da forma ser-outra, pensando-a a partir de posigoes e condigoes plurais da ser-mulher(es). Assim, ao mobilizar as reflexoes das intelectuais negras e indígenas para percorrer caminhos distintos do processo de exploragao e opressao capitalistas sob cujas mulher(es)2 tornamo-nos ser-outras, a escuta será o método privilegiado de análise. Pois, como chama a atengao Hazel Carby em White Woman Listen! Black Feminism and the Boundaries of Sisterhood (1997) há obstáculos epistemicos, pois, antes, ontológicos — a personagem Tituba diria "Nao parecíamos estar no mesmo mundo"3 —, e, logo, políticos a constituigao da sororidade entre as mulher(es), uma vez que o patriarcado racista estrutura as relagoes de poder de modo as mulher(es) brancas ocuparem posigoes privilegiadas e opressoras, ainda que subalternizadas, a despeito de uma militancia antirracista. Relagao de poder que, por um lado, termina por se perpetuar nas construgoes teóricas, tornando as mulher(es) racializadas, no mais das vezes, em objetos da reflexao da herstory, construída pelas mulher(es) brancas. Por outro lado, essa posigao privilegiada, pautada em experiencias particulares, condiciona a própria reflexao — a consciencia, o habitus (BOURDIEU, 2006 [1979]) —, embora nao a determine de modo mecánico.

Nesse sentido, a escuta como método de investigagao e análise tem por objetivo minimizar essas distorgoes mas me proporcionar, concomitantemente, instrumentos capazes de apreender, na multiplicidade de posigoes e condigoes, como o patriarcado racista tem se constituído desde a acumulagao primitiva de capitais em importante pilar da expropriagao capitalista. Assim, o intuito desse artigo é rascunhar, a partir da categoria ser-outra, como genero e raga (assim como outras tantas alteridades mobilizadas), longe de se configurarem em meros aspectos ideológicos, podendo encontrar superagao dentro do sistema capitalista, sao basilares ao seu desenvolvimento.

Mais que uma variável em uma equagao? A ser-outra como pilar a acumulagao do capital

A exploragao e opressao intrínsecas a condigao de ser-mulher(es) foi uma dimensao reconhecida pelas militantes negras que lutaram contra a escravidao no século XIX, sendo expressa de modo literal

2 Utilizo as mulher(es), mantendo o artigo no plural sem marca^ao e destacando o plural do substantivo, pois, embora o plural possa ser amplamente utilizado, a pluralidade das posigoes e condigoes que atravessam a experiencia do género tendem a ser suprimidas, no imaginario social, mas também nas diversas perspectivas do feminismo branco.

3 A personagem diz das diferen^as, a despeito do afeto, entre ela e a esposa e filha do senhor que a comprou no romance histórico Eu, Tituba, bruxa negra de Salem, de Maryse Condé vencedora do New Academy Prize, 2018.

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no questionamento central do discurso de Sojourner Truth "Nào sou eu uma mulher?" (1851), cuja condiçâo de ser mulher, bem que repleta da singularidade de uma mulher negra fazendo-se na e contra a escravidâo — no trabalho forçado, arando e colhendo, nos castigos físicos —, sem qualquer regalo pela pretensa fragilidade feminina, remete sobretudo à exploraçâo e à opressào sexual e pro(criativa)4. Sojourner, assim como as mulheres europeias de diferentes classes, foi submetida há um número exorbitante de gestaçoes e partos — treze —, mas nâo pôde, de fato, viver a maternidade, tendo suas filhas e filhos arrancadas de seu convivio, vendidas5 enquanto mercadorias6. Davis ressalta:

A exaltaçâo ideológica da maternidade — tâo popular no século XIX — nâo se estendia às escravas. Na verdade, aos olhos de seus proprietários, elas nâo eram realmente mâes; eram apenas instrumentos que garantiam a ampliaçâo da força de trabalho escrava. [...] Uma vez que eram classificadas como "reprodutoras", e nâo como "mâes", suas crianças poderiam ser vendidas e enviadas para longe, como bezerros separados das vacas. Um ano após a interrupçâo do tráfico de populaçôes africanas, um tribunal da Carolina do Sul decidiu que as escravas nâo tinham nenhum direito legal sobre suas filhas e filhos. Assim, de acordo com essa medida, as crianças poderiam ser vendidas e separadas das mâes em qualquer idade, porque "crianças escravas [...] estâo no mesmo nível de outros animais" (DAVIS, 2016 [1981], 19 e 20).

Das mulheres negras escravizadas, a quem — mais fortemente, a partir da proibiçâo do tráfico de mulher(es) e homens negras7 — impoe-se o trabalho pro(criativo), foi, no mais das vezes, retirada a possibilidade de cuidado de suas filhas e filhos, cuidado esse que constitui a estrutura do mito da maternidade8.

Davis, ainda, demostrando o caráter mitológico e fundamentalmente racista da idealizaçâo da maternidade escrava, nesse contexto cujo seu efetivo exercício era negado às mulheres escravizadas, expoe a fragilidade empírica na construçâo da personagem Elisa, mâe abnegada, de A cabana do pai Tomás, da abolicionista branca Harriet Beecher Stowe, um dos livros mais lidos nos E.U.A., afirmando:

4 Utilizo pro(criagao), pois o caráter criativo desta atividade social tem sido estruturalmente apagado pelo capitalismo patriarcal, embora constitua a etimologia da palavra. Desse modo, o parenteses tanto se remete a esse apagamento, quanto tem por objetivo ressaltar a criagao social que atravessa o trabalho de procriagao.

5 Utilizo a concordancia no plural do feminino, com o objetivo de desnaturalizar a identidade semántica entre masculino e neutro e universal, perpetuada pela norma gramatical da língua portuguesa.

6 Em Amada, a personagem Baby Suggs traz, de modo visceral, nao somente o drama da maternidade negada, mas a brutalidade da desumanizagao, da alteridade absoluta conferida ao outro tratado como pega, e a contradigao da humanidade que se mantém teimosa, resistente, experimentada pelo choque. "Entáo, os oito filhos de Baby Suggs eram de seis pais. O que ela chamava de maldade da vida era o choque que ela recebia ao saber que ninguém parava de jogar as pegas só porque entre as pegas estavam seus filhos. Halle foi o que ela conseguiu conservar mais tempo. Vinte anos. Uma vida inteira. Coisa que lhe foi dada sem dúvida, como compensagao ao ficar sabendo que suas duas filhas, nenhuma das quais tinha ainda dentes permanentes, haviam sido vendidas e mandadas embora e que ela nao pudera nem acenar adeus." (MORISSON, 2011[1987],

47).

7 O tráfico de pessoas escravizadas passa a ser proibido por lei nos E.U.A, a partir do ano de 1807, enquanto no Brasil, com a lei Eusébio de Queiroz, somente em 1850. Sem, com isso, que o tráfico clandestino de pessoas escravizadas tenha sido suplantado até o final da escravidao (MARQUES, 2016).

8 Há uma separagáo velada entre gestar e parir e o cuidar representada pela imagem do "embalar', dos primeiros todo caráter ativo e autodeterminado é retirado, sob o segundo, cujo caráter de abnegagao o transforma em um atividade humana, subalterna, mas, mágica, no sentido de Mauss (1904). E é sobre os cuidados que se sustenta o mito da maternidade.

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[...] a autora falha por completo ao captar a realidade e a sinceridade da resistencia das mulheres negras à escravidâo. Inúmeros atos de heroísmo realizados por mâes escravas foram registrados. Essas mulheres, ao contrário de Elisa, eram levadas a defender seus filhos pela repulsa veemente à escravidâo. A origem de sua força nâo era o poder místico vinculado à maternidade, e sim suas experiencias concretas como escravas. Algumas delas, como Margaret Garner, preferiam matar suas filhas para nâo testemunhar sua chegada à vida adulta sob a brutal circunstancia da escravidâo (DAVIS, 2016 [1981], 41).

No entanto, ao mesmo tempo, foram forçadas a cuidarem das crianças dos senhores brancos e, nesse cuidado, fundou-se a imagem da mulher negra enquanto símbolo da doçura maternal: a ama de leite, a "mâe preta", a "bá". Segundo Lélia Gonzalez:

Ela, simplesmente, é a mâe. É isso mesmo, é a mâe. Porque a branca, na verdade, é a outra. Se assim nâo é, a gente pergunta: quem é que amamenta, que dá banho, que limpa cocô, que pôe prá dormir, que acorda de noite prá cuidar, que ensina a falar, que conta historia e por aí afora? É a mâe, nâo é? Pois entâo. Ela é a mâe nesse barato doido da cultura brasileira. Enquanto mucama, é a mulher; entâo "bá", é a mâe. A branca, a chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Nâo exerce a funçâo materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a "mâe preta" é a mâe. (GONZALEZ, op. cit., 235).

A voracidade da expropriaçâo experimentada pelas mulher(es) escravizadas negras e indígenas nâo apenas desnuda o que o mito da maternidade branca e ocidental oculta, mas, antes, foi protoforma para o desenvolvimento de uma dimensâo fundamental da forma ser-mulher(es): os corpos femininos foram transformados em máquinas de produçâo (gestar, parir, cuidar) da mercadoria essencial à produçâo capitalista: a força de trabalho.

As mulheres escravizadas gestavam e pariam as crianças que lhes seriam expropriadas para serem comercializadas e colocadas, tâo logo fosse possível, a produzir mais-valor. Ao mesmo tempo, o seu trabalho de cuidados foi imprescindível, enquanto cuidadoras dos infantes brancos, de suas mâes e de seus pais. Segundo Grada Kilomba: "Durante o colonialismo, o seu trabalho foi usado para nutrir e prover a casa branca, enquanto seus corpos foram usados como mamadouros, nos quais as crianças brancas sugavam o leite. Existem imagens imponentes de negritude e maternidade." (KILOMBA, 142, 2019 [2009]).

A contradiçâo dessa imagem é objeto de análise de Sueli Carneiro. Analisando uma citaçâo de Monteiro Lobato9, ela afirma:

Este é o outro grande estereotipo no qual as mulheres negras brasileiras estâo aprisionadas, a figura da mâe-preta que "[...] suscita diferentes reflexôes [...]. Privilegiado exemplo de 'corrupçâo' na maior parte de nossas referencias, mas

9 Personagens como Tia Anastácia contribuiram para a difusâo negra no imaginário literário brasileiro.

e a naturalizaçâo dessa imagem maternal racista da mulher

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também 'alma de sentimentos extraordinariamente nobres' e 'cora^ao transbordando de sublimes dotes'" (CARNEIRO, 2019 [2002], Edigao Kindle).

O lugar objetivamente ocupado pela imagem da mae-preta desperta, por meio da ideologia racista, a contradigao entre a mae complacente e incondicionalmente amorosa, sob cuja imprescindibilidade do trabalho de cuidados exercido pelas mulher(es) negras nas sociedades coloniais é invisibilizada, e a corruptora, justamente pela centralidade que ocupam na formagao dos infantes das classes opressoras. Conquanto, Carneiro ressalta:

Os estereótipos construidos em torno da figura da "máe-preta" desempenharam e desempenham papel estratégico nas diferentes visoes quanto a natureza da escravidao em nosso país. O interessante a destacar é que as bases materiais que sustentaram a existencia das "máes-pretas" sáo omitidas, centrando-se a atengao no investimento subjetivo da escrava no desempenho das fungoes de ama-de-leite (idem, Edigao do Kindle).

Assim, enquanto Angela Davis (2004) faz a crítica do mito da maternidade como categoria universal do ser-mulher(es), desreificando o vínculo entre mulher(es) negras e o ser-mae, cuja expropriagao da maternidade lhes foi imposta, mesmo quando na forma de resistencia — como nos casos de abortos e infanticídios —, Lélia Gonzalez, Grada Kilomba e Sueli Carneiro desvelam as bases concretas sobre as quais esse mito se sustenta: o cuidado físico e afetivo exercido pelas mulher(es) negras na criagao das criangas brancas. O mito da "máe-preta" se sustenta através da contradigo entre ser impedida de acessar a experiencia da maternidade e ser forgada a exerce-la estruturalmente.

O que a condigao e posigao das mulher(es) negras, e também indígenas, escravizadas nos revelam? Qual é a materialidade que as imagens estereotipadas das mulher(es) negras e indígenas escodem? Por que atividades expulsas da dimensao produtiva da acumulagao capitalistas sao aquelas idealizadas pelo capitalismo patriarcal?

O mais-valor a luz da ser-outra

Os trabalhos de pro(criagao) e cuidados foram considerados trabalhos improdutivos ao capital, isto é, que nao produzem valor e mais-valor. A partir dos anos 60, setores do feminismo marxista passaram a reivindicá-lo enquanto trabalho reprodutivo, indispensável a produgao capitalista, mas nao enquanto produtor de valor e mais-valor, essa conceituagao ganhou folego novamente com os trabalhos das pesquisadoras Cinzia Arruza, Susan Ferguson, Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser, entre outras, que reivindicam a categoria de reprodugao social10. Cinzia Arruza em Funcionalista, determinista e reducionista: o feminismo da reprodugao social e seus críticos (2016), opondo-se a crítica da pesquisadora Stevi Jackson sobre a diferenciagao entre trabalho produtivo e reprodutivo, afirma:

10 Eu nao pretendo me aprofundar nesse debate, uma análise aprofundada dessa corrente pode ser encontra em Novos ares na tradifao marxista, na tese Working poor japonés: trabalho imigrante dekassegui e suas transversalidades (2020), da pesquisadora Mariana Shinohara Roncato.

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Jakson surpreendentemente afirma que a distinçâo entre produçâo e reproduçâo nâo faz nenhum sentido, porque algo nâo pode ser reproduzido sem ser produzido antes. Obviamente, essa afirmaçâo se sustenta apenas se assumirmos a palavra "produçâo" em seu sentido geral, mas certamente nâo se mantém se o que queremos dizer é produçâo de valor. Ademais, as feministas marxistas e socialistas nâo negam que o trabalho da reproduçâo é um tipo de trabalho. Pelo contrário, as teóricas da reproduçâo social tendem a ampliar o conceito de trabalho necessário para incluir o trabalho reprodutivo em seu interior (ARRUZA, 2017 [2016], 47).

Concordo com Arruza: o trabalho realizado através das relaçoes de parentesco tem especificidades em relaçâo ao trabalho assalariado formal (e, até mesmo, em relaçâo às formas de assalariamentos informais e precárias), no entanto, sua especificidade nâo se encontra em seu caráter improdutivo ao capital. A especificidade dos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados se ancora i) na marginalidade de sua relaçâo ontologicamente particular entre ser-humana e natureza; ii) na transposiçâo de seu caráter social à determinaçâo biológica, que torna ainda mais fetichizada a mercadoria que produz: a força de trabalho; iii) no seu nâo-assalariamento.

Assim, através da ascensâo das estruturas patriarcais, o capital transfere às mulher(es), socialmente responsabilizadas pelo trabalho de pro(criaçâo) e cuidados, todo o custo desse processo de trabalho. Enquanto a força de trabalho assalariada tem uma parcela de seu tempo de trabalho expropriada pelo capital, nesse trabalho, realizado na esfera doméstica por meio, como bem chama a atençâo Arruza, das relaçoes de parentesco, a totalidade do trabalho é nâo paga.

Ainda, no caso do trabalho formal, os custos da produçâo (o trabalho morto, trabalho objetivado cujos meios de produçâo porta) compoem os gastos da empresa capitalista — a transferencia destes às trabalhadoras e trabalhadores, por meio da informalidade da relaçâo de trabalho, tem sido utilizada na intensificaçâo do trabalho e no aumento da extraçâo de mais-valor (ANTUNES, 2013, 17). No caso das trabalhadoras nâo-assalariadas de pro(criaçâo) e cuidados, essa transferencia é inerente ao seu modo de ser na sociedade capitalista, é axial ao patriarcado capitalista e racista.

Marx, em texto nâo publicado em vida e publicado no Brasil como Capítulo VI, inédito de O capital (escrito entre os anos 1863/1866), estabelece dois pré-requisitos para que um trabalho e, assim, as trabalhadoras que o empreendem sejam produtivas ao capital: a produçâo direta de mais-valor e o assalariamento das trabalhadoras. Vejamos de mais perto nos trechos a seguir:

Como o fim imediato e (o) produto do trabalho por excelencia da produçâo capitalista é a mais-valia, temos que somente é produtivo aquele trabalho que (e só é trabalhador produtivo aquele possuidor da capacidade de trabalho) diretamente produza mais-valia; por isso, só aquele trabalho consumido diretamente no processo de produçâo com vista à valorizaçâo do capital (MARX, 2010 [1863/1866], 108).

Trabalhador produtivo nâo é mais do que uma expressâo concisa que designa a relaçâo no seu conjunto e o modo como se apresentam a força de trabalho e o trabalho no processo de produçâo capitalista. Por conseguinte, ao falarmos de trabalho produtivo, falamos pois, de trabalho socialmente determinado, de trabalho que implica uma relaçâo nitidamente determinada entre comprador e vendedor de trabalho. O trabalho produtivo troca-se diretamente por dinheiro que em si é capital [...] (idem, 114)

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A força de trabalho é a mercadoria, por excelencia, para o capital. Como estou tentando demonstrar, ela nâo brota, espontaneamente, nas fábricas, mas é fruto de um processo de trabalho que foi moldado por meio da expropriaçâo dos corpos feminilizados, realizada pela caça às bruxas, pela colonizaçâo e pela escravizaçâo, sendo trabalho socialmente determinado pelo capital. Mas esse processo de trabalho — pro(criaçâo) e cuidados — gera mais-valor?

A mercadoria produzida pelo trabalho de pro(criaçâo) e cuidados é duplamente impactada pelo fetichismo da mercadoria. Primeiramente, nâo se diferindo das demais mercadorias, a força de trabalho parece possuir completa autonomia, no entanto, embora possua de fato vida própria, suas propriedades particulares, aquelas necessárias ao seu dispendio — as habilidades locomotivas, manuais, cognitivas e sexuais —, sâo desenvolvidas pela força de trabalho das mulheres gestantes e cuidadoras. Adermais, diferente das mercadorias produzidas sob a égide do assalariamento, a força de trabalho é produzida nas relaçoes domésticas e parentais de modo nâo pago ou sub-remunerado, e, portanto, a força de trabalho das mulher(es) gestantes e cuidadoras nem sequer é tornada, no mais das vezes, valor de troca. É exclusivamente mais-valor. O conteúdo específico deste trabalho fetichiza a pureza dessa extraçâo.

Lançar a maternidade de modo ritual para fora da esfera da produçâo societal, da civilizaçâo, da cultura, para dentro da esfera da reproduçâo, do antissocial, da natureza, é uma invençâo necessária do patriarcado capitalista — sem precedentes em outras estruturas patriarcais. Essa cisâo, a partir da especificidade de seu conteúdo, torna totalmente invisível o caráter essencialmente produtivo dos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados. Mas, vale lembrar, que o próprio Marx ressalta: "o ser trabalho produtivo é uma determinaçâo daquele trabalho que em si e para si nâo tem absolutamente nada a ver com o conteúdo determinado do trabalho [...]" (MARX, 2010 [1863/1866], 115).

Logo, útero, seios, vulva, afetividade, braços e cogniçâo sâo tanto meios de produçâo, quanto força de trabalho produtiva, expropriada, de modo nâo-assalariado ou subassalariado e, majoritariamente, nâo pago pela ascensâo do patriarcado capitalista. Essa expropriaçâo ocorre em radicalidade no caso das mulher(es) escravizadas que sâo juridicamente transformadas em mercadorias — nâo somente sua força de trabalho — e de cuja capacidade pro(criativa) é abertamente colocada a serviço da acumulaçâo do capital (DAVIS, 2016 [1981]; MBEMBE, 2018 [2013].

Só que, para Marx, a produçâo capitalista se funda na relaçâo de exploraçâo e opressâo do capital sobre o trabalho assalariado, avançando continuamente sobre o trabalho improdutivo, tornando-o produtivo para si. Marx concebeu o assalariamento, que converte a força de trabalho em capital variável, como estrutura essencial da produçâo de valor e mais-valor, pois seu ponto de partida, como ele mesmo evoca, foi o capitalismo em desenvolvimento da Europa; os processos que ocorriam marginalmente às metrópoles foram concebidos como formas embrionárias ou primitivas desse modo de produçâo. Mas olhemos com o olhar latino-americano de Joaquín Torres Garcia, em América Invertida (1943), o desenvolvimento do capitalismo ocorreu, concomitantemente, bem que de modo diverso, nas metrópoles e nas colônias, no "centro" e nas "periferias" do capital (WILLIANS, 2012 [1944]), nas fábricas e nas casas; em cujos primeiros subalternizam os segundos. Assim, tanto quanto o assalariamento, o nâo-assalariamento foi, desde a gênese, estrutura essencial da produçâo de valor e mais-valor.

Para que a força de trabalho seja produtiva, é preciso que ela se metamorfoseie em capital variável. Segundo Marx, isso ocorre pela transferencia dos valores intrínsecos aos meios de produçâo às mercadorias em produçâo:

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Quando o trabalho produtivo transforma os meios de produçâo em elementos constituintes de um novo produto, o valor desses meios de produçâo sobre metempsicose [Seelenwaderung]. Ele transmigra do corpo consumido ao novo corpo criado. Mas essa metempsicose se dá como que por trás das costas do trabalho efetivo. O trabalhador nâo pode adicionar novo trabalho, criar novo valor, sem conservar valores antigos, pois ele tem sempre de adicionar trabalho útil numa forma socialmente determinada, e nâo tem como adicioná-lo numa forma útil sem transformar os produtos em meio de produçâo de um novo produto e, desse modo, transferir ao novo produto o valor desses meios de produçâo. A capacidade de conservar valor ao mesmo tempo que adiciona valor é um dom natural da força de trabalho em açâo, do trabalho vivo, um dom que nâo custa nada ao trabalhador, mas é muito rentável para o capitalista, na medida em que conserva o valor existente do capital. Enquanto o negocio vai bem, a atençâo do capitalista está absorvida demais na criaçâo de lucro para que ele perceba essa dádiva gratuita do trabalho. Apenas interrupçoes violentas do processo de trabalho, crises, tornam-no sensível a esse fato (MARX, 2013 [1867], 287).

Depois do percurso que fizemos até aqui, é difícil ler essa passagem sem pensar nos trabalhos de gestar, parir, amamentar e criar. A metempsicose realizada nesses processos, acentua o caráter laboral dessas atividades, que transferem valor à mercadoria força de trabalho — através dela, forma-se o habitus (BOURDIEU, 2006 [1979]; BERG, 2016) das futuras trabalhadoras e trabalhadores, suas disposiçoes, com conhecimentos explícitos e tácitos, que serâo integrados no processo de realizaçâo dessa mercadoria. Entretanto, esse "dom natural" vem com o rebaixamento significativo no valor da força de trabalho (assalariada) das trabalhadoras que o empreendem. Em outras palavras: metamorfosear-se em capital variável, nesse caso específico, cuja opacidade lhe é estrutural, tem jusficado sua desvaloraçâo frente ao capital, contribuindo para o aumento da extraçâo de mais-valor naquelas áreas explicitamente produtivas nas quais as mulher(es) compoem o contigente da força de trabalho.

Nesse sentido, em concordia com Maria Mies (1986), eu acredito ser um equívoco compreender os trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados vinculados à reproduçâo11, pois justamente tal vinculaçâo tem sido mecanismo do capital para manter intacta sua estrutura de nâo-assalariamento de contingentes de trabalhadoras produtivas axiais à acumulaçâo do capital.

Ainda, há uma importante questâo: todo trabalho de pro(criaçâo) e cuidado é produtivo? A potencial realizaçâo da mercadoria força de trabalho, isto é, sua efetiva transmutaçâo em capital variável12, é o que a torna a mercadoria primordial à acumulaçâo de capitais. Como para qualquer outra, a realizaçâo do mais-valor é imprescindível, mas sua produçâo nâo ocorre no consumo, mas no processo de trabalho, isto é, inerente aos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados.

Que a força de trabalho possa jamais se realizar enquanto mercadoria é algo que partilha com as demais. Que um contingente pequeno das seres-humanas produzidas sob o esteio do capital irá compor as parcelas parasitárias das burguesias é outro elemento fundamental. Para essa pequena parcela cujo destino social é a expropriaçâo do trabalho de outrem, o trabalho de pro(criaçâo) e cuidados — esse

11 Helena Hirata e Daniéle Kergoat chamam a aten^ao, desde o final da década de 80, para uma certa opacidade entre trabalho produtivo e reprodutivo nos trabalhos de care, onde esses sao monopolizados e subalternizados pelos trabalhos socialmente masculinos na divisao sexual do trabalho, ancorada nas rela^óes sociais de género (HIRATA, 1986; KERGOAT, 1986).

12 Ver Silva Federici, em Salarios contra o trabalho doméstico (2019 [1975]).

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segundo sendo, majoritariamente, exercido pelas mulher(es) da classe trabalhadora — nâo é essencialmente um trabalho produtivo, pois, como ressalta Marx, nâo é o conteúdo do trabalho que o torna produtivo, mas seu caráter socialmente determinado, isto é, subordinado à produçâo de valor e mais-valor, nesse caso, à produçâo da força de trabalho.

Contudo, a despeito de nâo exercerem esse trabalho enquanto trabalho produtivo, essa dimensâo da ser-mulher(es), socialmente determinada pelo modo de produçâo capitalista, também condiciona os trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados exercidos pelas mulher(es) médias e dirigentes, que permanecem monopolizando parte significativa da produçâo de sua classe social. Nesse sentido, podemos nos questionar em que medida as mulher(es) dessas classes, ao serem condicionadas pela mulheridade do patriarcado capitalista, fundada no controle da capacidade pro(criativa), nâo têm seus corpos também proletarizados — bem que nâo enquanto produtores de valor e mais-valor — de modo nâo-assalariado?

Porém, é preciso ressaltar: ter nossos úteros, seios, vulvas e afetos a serviço da produtividade capitalista, a saber, produçâo de valor e mais-valor, nâo é uma bandeira política, ao contrário, é a condiçâo trágica que a acumulaçâo do capital nos impoe. A radicalidade das formas de opressâo e exploraçâo que lhe sâo inerentes encontram-se encarnadas no estupro, no assédio, no feminicídio e nas formas de controle direto da capacidade de pro(criaçâo) — ora pela criminalizaçâo do aborto e empecilhos ao planejamento das gestaçoes, ora pela imposiçâo do aborto e de formas temporárias e permanentes de contracepçâo. A imbricaçâo entre o caráter produtivo e nâo-assalariado dos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados fez dessas práticas instituiçoes perenes de coerçâo da nossa capacidade pro(criativa).

Coube e cabe, majoritariamente, às mulher(es) o triplo trabalho de gestar e parir e cuidar da formaçâo de sua classe, bem como da formaçâo (através dos cuidados) das classes médias e burguesas. Em outras palavras, cabe às mulher(es), de modo insuperável e exclusivo — por serem detentoras exclusivas da capacidade de pro(criaçâo) — uma parte significativa do fazer-se da sua classe, ao mesmo tempo em que a divisâo do trabalho, que é também sexual e racial, lança-as ao fazer-se das classes dirigentes e proprietárias do capital. Sem por isso deixarem de exercer, em larga escala, as atividades que têm o monopólio conceitual da "produçâo".

O mito da maternidade tem permitido que além de gerada, a força de trabalho possa ser formada quase que exclusivamente pelas mulher(es), com baixíssimos custos ao capital — seja trabalhando para a formaçâo de suas crianças ou para a de outras classes. O custo da produçâo das futuras trabalhadoras e trabalhadores realizada pelas mulher(es), e só parcialmente incluída nos salários, rebaixa ainda mais o preço da força de trabalho, aumentando, portanto, a extraçâo de trabalho nâo pago (SAFFIOTI, 2013 [1969])13.

Mais do que transferir às mulher(es) o custo societal da sobrevivencia das futuras geraçoes, o capital nâo paga pela produçâo da mercadoria força de trabalho, seu custeamento é extraído do assalariamento, através do salário das mâes (atualmente, no Brasil, apenas 7% das mulheres declaram exercerem exclusivamente o trabalho doméstico14), dos pais, nâo raro, da aposentadoria das avós,

13 Embora Saffioti pertença ao grupo de intelectuais que concebe os trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados enquanto trabalhos reprodutivos, ela é pioneira em demosntrar como a privatizaçâo dos custos da re(produçâo) da força de trabalho pelas famílias trabalhadoras rebaixa o valor da força de trabalho de mulher(es) e homens.

14 Dados Datafolha, julho de 2019. Disponível em:

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rebaixando o valor da força de trabalho assalariada e aumentando a extraçâo de mais-valor naquela esfera tida produtiva.

Em suma: as formas da ser-outra, strito sensu, sâo fundamentais à acumulaçâo do capital da gênese até seu desenvolvimento contemporáneo, nâo se restringindo a resquício da acumulaçâo primitiva. Quanto a ser-outra, esse é o lugar que o capital ameaça (por necessidade estrutural) lançar e, ao dilapidar os direitos conquistados do trabalho, gradativamente, lança um contingente crescente de trabalhadoras assalariadas nos mais diversos momentos do seu desenvolvimento. Todas as formas de trabalho nâo-pagos que estâo sendo criadas pela quarta revoluçâo industrial15, longe de lhe ser uma particularidade, parece demonstrar o avanço de uma lógica de expropriaçâo inerente ao capitalismo desde sua gênese — realizada sobretudo na alteridade absoluta — às dimensoes cada vez mais profundas da ser-humana e a contingentes cada vez maiores de trabalhadoras assalariadas.

Há uma articulaçâo crescente entre a ser-outra, em suas diversas posiçoes e condiçoes, e as formas parciais dessa experiência no assalariamento, nâo por acaso as terceirizaçoes e trabalhos precarizados e sub-remunerados crescem, majoritariamente, sobre o contigente de trabalhadoras negras, indígenas, imigrantes e trans, bem como sobre toda e qualquer diferença que possa ser expropriada e transformada em alteridade absoluta, produzindo e realizando a acumulaçâo de capital16.

Acumulaçâo do capital: as imbricaçoes ontológicas entre capital/trabalho

(assalariado) e ser-outra

Retalhar e devorar. A fome apocalíptica intrínseca ao capital, "Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas!" (MARX, 2018[1867], 670), sua necessidade de reproduçâo contínua, por meio tanto da extraçâo quanto da realizaçâo ampliadas do mais-valor, o leva à necessidade de tencionar a transubstanciaçào de toda e qualquer diferença em alteridade absoluta — subsumindo as singularidades de seus conteúdos e formas, dilapidando-as.

Cabe aqui reforçar que a diferença nâo é um dado natural, bruto, inerente aos sujeitos individuais e coletivos a serem expropriados; a diferença mesma é sempre construída historicamente, de modo processual e contingente, é uma fabulaçâo nos termos de Achille Mbembe17 (2013), um processo complexo de outremizaçâo de mulher(es), homens, crianças, natureza etc. Embora a alteridade absoluta seja o objetivo fundamental do capital, essa construçâo nâo é unilateral; é fa%er-se, (re)ativo e criativo.

https: / / www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/parcela-da-populacao-que-se-declara-dona-de-casa-cai-para-7-em-26-anos.shtml

15 Ver FESTI, Ricardo. 2020

16 Segundo dados da PNAD/IBGE de 2019, no Brasil, 41, 4 % da força de trabalho encontrava-se na informalidade. Ainda, segundo a PNAD COVID-19, o desemprego cresceu 27, 6, significativamente maior entre mulheres, negros e jovens.

17 Ainda, Mbembe destaca o caráter ambivalente da fabulaçâo racial, por um lado, "[...] as duas noçoes de 'Africa' e de 'negro' foram mobilizadas em processos de fabricaçâo de sujeitos raciais cuja degradaçâo é sua marca preponderante e cujo atributo inerente consiste em pertencer a uma humanidade à parte, execrada, a dos dejetos humanos" (MBEMBE, 2018 [2013], 229), por outro lado, "[...] animal fantástico, sempre uma figura hierática, metamórfica, heterogénea e ameaçadora, capaz de rebentar em cascatas" (idem, 229). Esse caráter ambivalente da outremizaçâo, que a escravizaçâo negra leva à potencialidade máxima, é constitutivo da construçâo da diferença no modo de produçâo capitalista.

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Nesse sentido, Avtar Brah (1996) chama a atençâo para a própria configuraçâo da categoria negro, fundamental à outremizaçâo axial capitalista18: "Como os processos culturais sâo dinámicos, e o processo de reivindicaçâo é também mediado, o termo 'negro' nâo precisa ser construído em termos essencialistas. Pode ter diferentes significados políticos e culturais em contextos diferentes" (BRAH, 2006 [1996], 335).

O mesmo caráter fundamentalmente processual, de fazer-se, pode ser atribuído à categoria mulher(es), para cuja pluralidade busquei oferecer algumas pistas, e, também, à categoria classe trabalhadora.

É Rosa Luxemburgo (1912) quem, a partir de sua crítica à lei de acumulaçâo do capital, desenvolvida por Marx em O Capital, nos oferece a base teórica à noçâo de ser-outra — que se pretende ontológica, marxista e feminista — na forma socialmente determinada do capital. Segundo Rosa Luxemburgo:

No condizente à sua forma de atuar e às leis que a regem, a produçâo capitalista é considerada, no mundo inteiro e desde o início, o próprio depósito dos tesouros das forças produtivas. Em sua ânsia de apropriaçâo das forças produtivas com vistas à exploraçâo, o capital esquadrinha o mundo inteiro, procura obter meios de produçâo em qualquer lugar e os tira ou os adquire de todas as culturas dos mais diversos níveis, bem como de qualquer forma social (LUXEMBURGO, 1985 [1912], 246).

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Para o capital, seja em sua gênese, seja em sua constante efetivaçâo, a lei é esquadrinhar e expropriar e capitalizar outros modos de ser: expropriar para apropriar-se das diferenças fabuladas socialmente. Sendo assim, o capital necessita, estruturalmente, transubstanciar as alteridades em alteridades absolutas, destituindo-as, portanto, da reciprocidade, retirando seu caráter de sujeitos plenos. Tudo o que nâo é personificaçâo do capital é, potencialmente, ser-outra. Esse processo historicamente vem ocorrendo sob o manto da igualdade formal, e de uma concepçâo (tâo ilusória quanto reiterada) do capitalismo enquanto modo de produçâo civilizatório em relaçâo aos modos de vida com os quais se choca. Nesse sentido, Marx ressalta:

Assim que os povos, cuja produçâo ainda se move nas formas inferiores do trabalho escravo, da corveia etc., sâo arrastados pela produçâo capitalista e pelo mercado mundial, que faz da venda de seus produtos no exterior o seu principal interesse, os horrores bárbaros da escravidâo, da servidâo, etc. Sâo coroados como o horror civilizado do sobretrabalho. [...] à medida que a exportaçâo de algodâo tornou-se interesse vital daqueles estados, o sobretrabalho dos negros, e, por vezes, o consumo de suas vidas em sete anos de trabalho, converteu-se em fator de um sistema calculado e calculista. (MARX, 2013 [1867], 310).

Marx demonstra que a escravidâo e a servidâo, sob bases capitalistas, transformam-se tâo logo em extraçâo de mais-trabalho, e, nessa metamorfose, o cálculo é sobreposto às relaçoes tradicionais. No entanto, discordo do acento que Marx confere à questâo. O capital se funda ontologicamente sobre a

18 "O que seríamos ou faríamos ou no que nos transformaríamos como sociedade caso nao existisse um ranqueamento ou uma teoria da negritude?" (MORRISON, 2017 [2016], 86), se questiona Toni Morrison. Como poderia o capitalismo manter-se em pé sem essas fabulagóes?, questiono.

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contradiçâo entre igualdade formal, de um lado, e alteridade absoluta (ser-outra), de outro. Isto é, a acumulaçâo do capital se estrutura sobre uma base explícita, a relaçâo capital/trabalho (assalariado), e noutra, implícita, cuja lógica capitalista nâo subsumiu completamente os conteúdos singulares à forma expressa: mundos invertidos, espectrais.

Em outras palavras, embora partilhem — igualdade formal e ser-outra; assalariamento e nâo-assalariamento; trabalho livre e trabalho forçado — da subalternidade diante do imperativo da expropriaçâo do capital, o modus operandi da condiçâo de ser-outra ocorre por meio da inversâo dos princípios sobre os quais se fundamenta a relaçâo explícita capital/trabalho. Sobre a raça, dimensâo estrutural a essa condiçâo, Achille Mbembe aponta:

É uma moeda cuja funçâo é converter o que se vé (ou o que prefere nâo se ver) em espécie ou símbolo no interior de uma economia geral dos signos e das imagens que se trocam, que circulam, às quais se atribui ou nâo valor e que autorizam uma série de juízos e de attitudes práticas. Pode-se dizer que a raça é simultaneamente imagem, corpo e espelho enigmático no interior de uma economia das sombras, cujo atributo precípuo consiste em fazer da própria vida uma realidade espectral (MBEMBE, 2018 [2013], 197).

Podemos utilizar aqui a ideia do espelho mágico, de Virginia Wollf (1929)19. Sendo basilar à acumulaçâo do capital (e à noçâo de modernidade que lhe é inerente) — condiçâo de possibilidade à sua existência —, a ser-outra aparece como resquício de formas anteriores, e, até mesmo, enquanto entraves ao seu pleno desenvolvimento. Pois, espelha aquilo que o capital expurga de si, nomeadamente, sua sustentaçâo na outremizaçâo, no trabalho nâo-pago e coercitivo. Dimensoes sempre presentes da relaçâo capital/trabalho (assalariado) sâo experimentadas na relaçâo capital/trabalho (nâo-assalariado) de modo absoluto.

Ressalto, assim, que escravidâo e servidâo e patriarcado, a despeito de terem existido em outros modos de vida, nascem modernos e capitalistas. Isto é, nâo sâo formas inferiores da protogênese do capital, mas formas perpétuas, pois estruturais de seu desenvolvimento: seu pilar espectral. Essa economia das sombras que, como indica Mbembe, é experimentada em um radicalidade através da construçâo da raça atrelada, fundamentalmente, aos processos de colonizaçâo e escravizaçâo, também é constitutiva da construçâo da mulheridade no modo de produçâo capitalista. A atualidade desse processo é reiterada por Federici:

Hoje, os aspectos da transiçâo do capitalismo podem parecer (pelo menos na Europa) coisa do passado ou — como Marx afirmou nos Grundrisse (1973, 459) [Manuscritos económicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política] — "pré-condiçôes históricas" do desenvolvimento capitalista, que seriam superadas por formas mais maduras do capitalismo. A semelhança fundamental entre esses fenómenos e as consequências sociais da nova fase de globalizaçâo que testemunhamos hoje, no entanto, no dizem algo diferente. (FEDERICI, 2017 [2004], 161).

19 Segundo Virginia Woolf: "A alegoría do espelho é de importancia suprema, porque carrega a vitalidade, estimula o sistema nervoso. Exclua isso e o homem morre como um viciado em cocaína quando privado da droga" (WOOLF, 2014 [1929], 55 e

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Nessa direçâo, cabe apontar que desde a gênese do capital, seu processo de acumulaçâo se dá a partir de expropriaçoes basilares, ancoradas em dimensoes socialmente construídas da diferença. Essa construçâo da alteridade, no mais das vezes, é submetida, de modo parcial ou integral, à alteridade absoluta, isto é, à condiçâo de ser-outra. E, concomitamente, devido às resistencias e às lutas, a momentos de igualdade formal (sem que o recurso à ser-outra deixe de ser amplamente mobilizado).

Venho ressaltando o caráter estrutural dessas expropriaçoes. Nomeio algumas delas: i) a expropriaçâo dos modos de vida com os quais o capital se choca, que, em determinadas circunstâncias, cria uma massa de trabalhadoras "livres" — cujas práticas e leis coercitivas e violentas forjam as condiçoes necessárias para que possam vender "livremente" sua força de trabalho — e, em outras, um contigente de mulher(es), homens e crianças que sâo, integralmente, transformadas em mercadorias, por meio da escravizaçâo; ii) a mercadorizaçâo da natureza, pela coisificaçâo de terras, florestas e reservas minerais e aquáticas, bem como pela bestializaçâo dos animais, tornando-os objetos a serem manipulados pelo creator spiritus do capital, e transformados em meios de produçâo de valor e mais-valor; iii) a expropriaçâo da capacidade pro(criativa) das mulher(es), tornando-a meio de produçâo da força de trabalho assalariada e nâo-assalariada.

Sendo assim, sejam explícitos ou espectrais, esses dois pilares do modo capitalista encontram-se ontologicamente imbricados à combinaçâo de expropriaçâo/apropriaçâo das diferenças tornadas ser-outras, como dimensoes sobrepostas, no entanto, com leis específicas. Segundo a perspectiva de Rosa Luxemburgo:

Em funçâo de suas relaçoes de valor e de suas relaçoes de natureza material, o processo de acumulaçâo do capital está vinculado por meio do capital constante, do capital variável e da mais-valia às formas de produçâo nâo-capitalista. Essas formas constituem o meio histórico que assiste ao desenrolar desse processo. Verdade é que, por si só, a hipótese do domínio geral e exclusivo do capital nâo basta para que a acumulaçâo do capital se configure como tal, uma vez que sem o meio nâo-capitalista ela se torna inconcebível sob todos os pontos de vistas (LUXEMBURGO, 1985 [1912], 250).

Luxemburgo demonstra que compreender o processo de acumulaçâo como "pertencente ao domínio geral e exclusivo da produçâo capitalista" (idem) é, especialmente, no livro III de O Capital, quando Marx vai se deparar com a acumulaçâo ampliada do capital nâo mais referente ao capitalista individual, mas em sua ampliaçâo global, uma abstraçâo equivocada, pois elimina da análise esse elemento constante e imprescindível à reproduçâo ampliada do capital: os modos de ser nâo-capitalistas.

É importante ressaltar que o que a autora define por formas de produçâo nâo-capitalistas nâo implica em uma relaçâo de exterioridade total ao modo de produçâo capitalista — embora o capitalismo venha continuamente expropriando sociedades e culturas que, até entâo, nâo tiveram qualquer contato com o "mundo ocidental". Luxemburgo confere centralidade analítica àqueles modos de vida que — em contato com o capital, inclusive, internamente à sociedade ocidental — resistiram e resistem à subsunçâo real20. Logo, a coexistencia entre subsunçâo formal e real é necessária à ampliaçâo do capital. Nâo por acaso, o par de oposiçâo violencia/resistencia tem centralidade na análise luxemburguista da

20 Marx distingue em O capítulo VI, inédito de O capital.

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acumulaçâo do capital — fundamental à análise marxiana, mas, por vezes, demasiadamente diluído nas abstraçoes lógicas —, sem, contudo, prescindir das abstraçoes e das fórmulas económicas, fundamentais ao desenvolvimento do seu argumento.

É através da forma ser-outra que o capital expropria os modos de vida distintos (em sentido amplo), é ela quem disponibiliza de modo crescente os elementos materiais e subjetivos, isto é capital constante e capital variável, à constante ampliaçâo da acumulaçâo, ao mesmo tempo em que, por sua essência em transmutar alteridades em alteridades absolutas, divide aqueles a quem expropria.

No entanto, é por sua unidade, por tentar transubstanciar a diversidade no uno, que os destinos das expropriadas, sejam assalariadas sejam nâo-assalariadas, encontram-se, indissoluvelmente, ligados, assim como suas resistências. No entanto, há também uma imbricaçâo ontológica entre ódio de classe, racismos e misoginia. O ódio à outra é um mecanismo imprescindível para que as diferenças possam transformar-se em alteridades absolutas, ser-outras, ao mesmo tempo em que desestabiliza as possibilidades de solidariedade entre a multiplicidade daquelas que seguem sendo expropriadas pelo capital.

Sendo assim, o estranhamento (Enfremdung), em todas aquelas dimensoes apontadas pelo jovem Marx nos Manuscritos de 1844, encontra na forma ser-outra sua mais completa efetivaçâo; mas nesse mundo invertido, cujas regras manifestas sâo aquelas que, no mundo da igualdade formal e do trabalho assalariado, operam de modo soturno, ou seja: alteridade absoluta, nâo-assalariamento, trabalho forçado. Em outras palavras, a forma ser-outra é o ápice do estranhamento na medida em que, ao transformar a capacidade pro(criativa) das mulher(es), e, ainda mais, ao transformar mulher(es), homens e crianças, integralmente em mercadorias, ou, de modo mais amplo, ao transubstanciar, por meio da fabulaçâo, diferenças em alteridades absolutas, "1) estranha da ser-humana a natureza, 2) [e a ser-humana] de si mesmo, de sua própria funçâo ativa, de sua atividade vital; ela estranha da ser-humana o gênero humano" (MARX, 2009 [1944], 84). Minha substituiçâo de homem por ser-humana), numa radicalidade só parcialmente experimentada na relaçâo capital/trabalho (assalariado).

Sendo, de acordo com Luxemburgo, necessidade intrínseca ao capital lançar mâo às condiçoes concretas externas à relaçâo capital/trabalho (assalariado) para acumular-se, o estranhamento radical, esse realizado no seu pilar espectral, lhe é estrutural. De tal modo que a devastaçâo das economias e culturas originárias e, posteriormente, camponesas; a utilizaçâo da força de trabalho racializada; e a militarizaçâo enquanto produçâo permanente da guerra sâo formas essenciais de seu desenvolvimento (LUXEMBURGO, 1985 [1912]). Sobre o avanço do capital na formaçâo dos E.U.A, Luxemburgo aponta:

Sob a presidência de Monroe, o congresso da Uniâo decidiu, em 1825, transferir os índios do leste do Mississípi para o Oeste. Os pele-vermelhas — ou pelo menos os que restaram da carnificina das quarenta guerras indígenas — resistiram bravamente, mas acabaram sendo expulsos como ladroes, impelidos para o Oeste como manadas de búfalos e enfiados em "reservas" qual animais enjaulados. Os índios tiveram que ceder lugar aos fazendeiros, agora era a vez do fazendeiro ceder lugar ao capital e ser ele mesmo empurrado para o outro lado do Mississipi (LUXEMBURGO, idem, 276).

A guerra e saque e exploraçâo da força de trabalho (outremizada) sâo percebidos como instrumentos inerentes à reproduçào do capital. Antes de avançarmos, é preciso esclarecer o sentido de

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reproduçâo do capital para Marx. Como aponta Luxemburgo, diferente da reproduçâo simples, a reproduçâo do capital é sempre acumulaçâo ampliada do capital, sendo fundamentalmente produtiva, pois é necessária que nâo apenas a realizaçâo do mais-valor (consumo) se amplie mas de capitais constantes e variáveis21. A condiçâo de ser-outra, essencialmente determinada pelo modo de produçâo capitalista, encontra-se imbricada nesses modos de vida nâo subsumidos à relaçâo capital/trabalho (assalariado). Dessa forma, ao ser pilar invisível da reproduçâo do capital, sobretudo estou considerando-a enquanto pilar produtivo à reproduçâo do capital.

Se Rosa Luxemburgo demonstra que a expropriaçâo violenta de outros modos de vida é estrutural à acumulaçâo do capital, as formas de resistencia que se opoem ao seu avanço também sâo aspectos fundamentais da tese desenvolvida pela autora22: ela confere centralidade às resistencias realizadas nesses outros locus ontológicos — e, por conseguinte, epistemológicos — seja através do enfrentamento à subsunçâo real das dimensoes da vida ainda nâo mercadorizadas (ou, pelo menos, nâo totalmente) na sociedade capitalista, seja aquelas empreendidas pelos mais diversos povos em defesa de suas condiçoes de existencia tradicionais

Segundo Rosa, a fórmula analítica da acumulaçâo ampliada capitalista C'=c+v+m é desenvolvida por Marx — assim como a fórmula do valor e mais-valor — levando em consideraçâo a relaçâo pura entre capital e trabalho assalariado. Isso nâo quer dizer que Marx ignorasse a colonizaçâo e o trabalho nâo-assalariado impostos às mulher(es) e homens e crianças nas formas da escravizaçâo e da servidâo nas colonias e as condiçoes sociais dos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados, monopolizados pelas mulher(es). Como já apontado, em relaçâo à colonizaçâo e à escravidâo, Marx faz frequentes referencias, todavia, em suas palavras: "Acumulaçâo de capital é, portanto, a multiplicaçâo do proletariado" (MARX, 2013 [1881], 690). Por proletariado, ele se referia à força de trabalho livre e (compulsoriamente) assalariada.

Ressalto, ainda, que Marx, como aponta Luxemburgo, também nâo ignorava o fato de que a crítica imanente que se dispos a fazer remetia nâo a um modo de produçâo universal, mas, como responde em carta, a uma "fatalidade histórica" que estava, no momento em que pesquisa e escreve, "expressamente restrita aos países da Europa ocidental" (idem, 850). Nesse sentido, nâo poderia ser suplantada, sem mediaçoes, enquanto instrumento de compreensâo do modo de acumulaçâo colonial; ademais, seu caráter totalizante lhe era uma potencia e nâo uma condiçâo teleológica:

Porém, nâo nos concerne aqui a situaçâo das colonias. O que nos interessa é apenas o segredo que a economía política do Velho Mundo descobre no Novo Mundo e proclama bem alto, a saber, o de que o modo capitalista de produçâo e acumulaçâo — e, portanto, a propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriaçâo do trabalhador (idem, 844).

21 Embora a taxa de mais-valor possa ser aumentada (e seja) pelo implemento da extraçâo de mais-valor relativo, isto é, pelo desenvolvimento das forças produtivas, reduzindo, consequentemente, o tempo socialmente necessário à produçâo das mercadorias (MARX, op. cit, 395), ampliar a força de trabalho enquanto capital variável é estrutural à reproduçâo do capital. Ver, ainda, o capítulo Relaçâo entre taxa de lucro e taxa de mais-valor,, do Livro III de O Capital (MARX, 2017 [1894]).

22 Davi Kopenawa (2010) e Achille Mbembe (2018 [2003]), ancorados sob perspectivas distintas daquela de Rosa Luxemburgo, evidenciam o mesmo caráter contínuo e axial das expropriaçoes violentas inerentes ao capitalismo — expressos nas noçoes de

necropolítica e de paixâo pela mercadoria. |(«)©©®|

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Para a autora, diferente da reproduçâo do capital, a abstraçâo que ocorre nas fórmulas do valor e mais-valor nâo sâo prejudiciais à compreensâo do real. No entanto, gostaria de questionar essa afirmaçâo. A desconsideraçâo do trabalho nâo pago e nâo-assalariado, realizado pelas mulher(es) nos trabalhos de pro(criaçâo) e cuidados da força de trabalho, bem como aquele realizado pelas mulher(es) e homens, crianças colonizadas, ao participarem ativamente, desde a gênese do capital (WILLIANS, 2012 [1944]) até sua forma contemporánea, tanto da extraçâo quanto da realizaçâo do valor e mais-valor global, ao nâo comporem as fórmulas analíticas marxianas do valor e mais-valor, as levam a inviesar a compreensâo da realidade concreta do capitalismo. Por se aterem ao pilar visível do capital, nâo compreendendo o quanto aquele pilar espectral, a ser-outra, lhe é estrutural, tais abstraçoes comprometem a busca por uma compreensâo unitária e totalizante do modo de produçâo capitalista23. No entanto, meu objetivo, ao me debruçar sobre tais abstraçoes marxianas é alimentá-las com questionamentos que possam potencializar a compreensâo do capital em sua concretude.

Consideraçoes finais

A categoria ser-outra é esse espelho ontológico, mágico e invertido, do sujeito universal e abstrato. Metamorfosear alteridades em alteridade absoluta tem sido instrumento poderoso e axial ao processo de expropriaçâo objetiva e subjetiva sobre o qual se sustenta a concepçâo moderna de humanidade. Nesse sentido, a fabulaçâo das diferenças é utilizada de modo mitológico, ao tomar para si, compulsoriamente, a miséria existencial do modo de ser do capital, a ser-outra, necessariamente, espelha-o em um imperium transcendental, imaculado pela concretude histórica, logo, universal e abstrato e eterno. Reduzida a esse espelho invertido, essa categoria, em sua pluralidade — fundamental e invisível —, é base ontológica do modo de ser do capital e da modernidade ocidental, é a raiz oculta, pois submersa em solo denso, do fazer-se humana na sociedade capitalista.

A ser-mulher(es) foi a lente pela qual venho construindo e questionando a ser-outra. Bem que essas duas categorias nâo possuam identidades redutíveis uma à outra, elas se encontram, pela ascensâo do patriarcado capitalista, geneticamente enlaçadas, e foi esse enlançamento que, em alguma medida, busquei rascunhar. Como tentei demonstrar, a ser-mulher(es) longe de ser uma categoria universal e abstrata, fundada em algum determinismo biológico, é uma construçâo inerente ao patriarcado capitalista para o qual a necessidade em controlar a capacidade pro(criativa) das mulher(es), controlando a produçâo da mercadoria essencial à produçâo capitalista — a força de trabalho —, articulou-se com um brutal e continuado processo de expropriaçâo de corpos feminilizados, isto é, outremizados pela fabulaçâo da feminilidade.

A ser-outra se configura por meio da experiência radical do estranhamento (Enfremdung), no entanto, tentei demonstrar que sua construçâo concreta, ao longo da ascensâo e consolidaçâo do capitalismo, é também fazer-se ativo e criativo. Para tanto, compreender o fazer-se, a partir de uma perspectiva feminista, retirando as mulher(es) do lugar de presença ausente no fazer-se histórico, em particular das classes subalternas, é basilar. Nâo obstante o seu sucessivo silenciamento, a ser-outra tem protagonizado o fazer-se da classe trabalhadora.

23 Rosa Luxemburgo, ao fazer a crítica da teoria da acumulado do capital em Marx — que respalda e modifica a apreensao das rela^óes concretas, no caso particular, demonstrando que o Imperialismo, em ascendencia, expressava mais que uma questao conjuntural, sendo estrutural do modo de produ^ao capitalista — buscava, explícitamente, ampliar a lei da acumulado marxiana e nao demove-la.

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Busquei, ainda, lançar uma perspectiva feminista decolonial à teoria marxista da valorizaçâo e acumulaçâo de capital, deslocando o acento sobre a relaçâo capital/trabalho (assalariado) para as formas de exploraçâo e opressâo laborais nâo-assalariadas, nomeadamente àquelas que se desenvolveram inerentes ao patriarcado racista pela imbricaçâo entre colonialismo e patriarcado e escravidâo, cuja ser-outra articula. Assim, lado a lado à relaçâo capital/trabalho (assalariado), a ser-outra — nesse mundo invertido e espectral — ascendeu, neste artigo, a um pilar do modo de ser do capital. Pilar esse que avança de forma violenta e célere, seja sobre o trabalho assalariado, seja sobre aquelas formas de ser que mantiveram certa autonomia frente ao capital.

Desenvolver uma ciencia comprometida com as lutas anticapitalistas e com a imaginaçâo — sociológica — de outras formas possíveis de existencia, nâo faz tanto tempo, era percebido enquanto um quixotismo pela ortodoxia do campo academico, cuja doxa, amplamente debatida, contudo, inquestionável, corroborava a perenidade de um mundo sem horizontes, sem sujeitos — o império do estar fragmentado e sem devir.

Diante desse contexto, posto como dado e inevitável, estamos sendo atravessados pelas imaginaçoes políticas das subalternas; segundo Krenak (2020), desses "filhotes da terra", essa "camada mais bruta, rústica, ôrganica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada à terra" (KRENAK, 22). Frente ao avanço brutal da expropriaçâo sobre os bens comuns e daqueles modos de vida que nâo subsumiram-se ao capital, os levantes se multiplicam, protagonizados por mulher(es), imigrantes, povos negros e indígenas, trabalhadoras camponesas e urbanas, a quem a acumulaçâo do capital precisa expropriar de qualquer châo, expatriar, arrancar de quaisquer relaçoes societais estáveis. Gente a ser lançada e, simultaneamente, expulsa do modo de vida capitalista — submetida à condiçâo de ser-outra.

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