Научная статья на тему 'Uma greve em dois tempos: o movimento nacional dos marítimos de 1953 no Rio de Janeiro e os impasses da historiografia política'

Uma greve em dois tempos: o movimento nacional dos marítimos de 1953 no Rio de Janeiro e os impasses da historiografia política Текст научной статьи по специальности «История и археология»

CC BY
144
12
i Надоели баннеры? Вы всегда можете отключить рекламу.
Журнал
Izquierdas
Scopus
ESCI
Область наук
Ключевые слова
greve dos marítimos / João Goulart / imprensa sindical e popular / historiografia política / Seafarers strike / João Goulart / Union and popular press / Political historiography

Аннотация научной статьи по истории и археологии, автор научной работы — Sérgio De Sousa Montalvão, Joana D´Arc Fernandes Ferraz

O objetivo deste artigo é discutir os impasses das análises historiográficas sobre a greve nacional dos marítimos de 1953, no Rio de Janeiro. Partimos da constatação que a corrente principal da historiografia política brasileira aborda este movimento como parte do processo de reconhecimento da habilidade do ministro do Trabalho João Goulart em negociar com os trabalhadores. Destacando o que seria o "estilo Jango" de administrar os conflitos trabalhistas, esta historiografia entende que o acordo firmado no mês de junho daquele ano, suspendendo a greve, seria o marco fundador do novo trabalhismo, que rompia com o corporativismo e a repressão policial do Estado Novo (1937-1945) e levava o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) diretamente para o campo da esquerda democrática. No entanto, o não cumprimento das cláusulas do referido acordo fez com que os marítimos cruzassem novamente os braços, em outubro de 1953. Este segundo tempo da greve é silenciado por esta corrente historiográfica, evitando assim que se mostre a polaridade entre Jango e os trabalhadores do mar. Nossa pesquisa na imprensa sindical e popular demonstra que, naquele momento, Jango ainda fundamentava sua política em muitos alicerces do velho trabalhismo.

i Надоели баннеры? Вы всегда можете отключить рекламу.
iНе можете найти то, что вам нужно? Попробуйте сервис подбора литературы.
i Надоели баннеры? Вы всегда можете отключить рекламу.

A strike in two times: the national movement of the seafarers in Rio de Janeiro and the impasses of political historiography

The aim of this paper is to discuss the impasses of historiographical analysis on national strike of seafarers of the 1953 in Rio de Janeiro. We start from the observation that the mainstream of Brazilian political historiography addresses this movement as part of the process of recognizing the ability of Labor Minister João Goulart to negotiate with workers. Highlighting what would be the "Jango style" of managing labor conflicts. this historiography understands that the agreement signed in June of that year, suspending the strike, would be the founding mark of the new labor, which broke with the corporativism and the police repression of the Estado Novo (1937-1945) and took the Brazilian Labor Party (PTB) directly to the field of the democratic left. However, failure to comply with the terms of that agreement caused seafarers to cross their arms again in October 1953. This second strike time is silenced by this historiographic current, thus avoiding showing the polarity between Jango and the sea workers. Our research in the trade union and popular press shows that, at that time, Jango was still grounding his policy on the many foundations of old labor.

Текст научной работы на тему «Uma greve em dois tempos: o movimento nacional dos marítimos de 1953 no Rio de Janeiro e os impasses da historiografia política»

Uma greve em dois tempos: o movimento nacional dos marítimos de 1953 no Rio de Janeiro e os impasses da historiografia política.*

A strike in two times: the national movement of the seafarers in Rio de Janeiro and the

impasses of political historiography.

Sérgio de Sousa Montalvao** Joana D'Arc Fernandes Ferraz***

Resumo: O objetivo deste artigo é discutir os impasses das análises historiográficas sobre a greve nacional dos marítimos de 1953, no Rio de Janeiro. Partimos da constatado que a corrente principal da historiografía política brasileira aborda este movimento como parte do processo de reconhecimento da habilidade do ministro do Trabalho Joao Goulart em negociar com os trabalhadores. Destacando o que seria o "estilo Jango" de administrar os conflitos trabalhistas, esta historiografia entende que o acordo firmado no mes de junho daquele ano, suspendendo a greve, seria o marco fundador do novo trabalhismo, que rompia com o corporativismo e a repressao policial do Estado Novo (1937-1945) e levava o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) diretamente para o campo da esquerda democrática. No entanto, o nao cumprimento das cláusulas do referido acordo fez com que os marítimos cruzassem novamente os bracos, em outubro de 1953. Este segundo tempo da greve é silenciado por esta corrente historiográfica, evitando assim que se mostre a polaridade entre Jango e os trabalhadores do mar. Nossa pesquisa na imprensa sindical e popular demonstra que, naquele momento, Jango ainda fundamentava sua política em muitos alicerces do velho trabalhismo.

Palavras-chave: greve dos marítimos, Joao Goulart, imprensa sindical e popular, historiografía política

Abstract: The aim of this paper is to discuss the impasses of historiographical analysis on national strike of seafarers of the 1953 in Rio de Janeiro. We start from the observation that the mainstream of Brazilian political historiography addresses this movement as part of the process of recognizing the ability of Labor Minister Joao Goulart to negotiate with workers. Highlighting what would be the "Jango style" of managing labor conflicts. this historiography understands that the agreement signed in June of that year, suspending the strike, would be the founding mark of the new labor, which broke with the corporativism

Esta pesquisa contou com o apoio de duas bolsas de Inicia^ao Científica concedidas pela Funda^ao de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Agradecemos por este suporte institucional e pelo empenho dos bolsistas Isabelly Neves Filgueiras e Marcus Antonio Cardoso Ramalho, estudantes do curso de gradua^ao em Administra^ao da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Doutor em Historia, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentado de Historia Contemporánea do Brasil da Funda^ao Getúlio Vargas do Rio de Janeiro - CPDOC/FGV-RJ. Professor Adjunto IV do Departamento de Administra^ao e professor colaborador do Programa de Pós-Gradua^ao em Administra^ao da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Doutora em Ciencias Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora Associada I do Departamento de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

and the police repression of the Estado Novo (1937-1945) and took the Brazilian Labor Party (PTB) directly to the field of the democratic left. However, failure to comply with the terms of that agreement caused seafarers to cross their arms again in October 1953. This second strike time is silenced by this historiographic current, thus avoiding showing the polarity between Jango and the sea workers. Our research in the trade union and popular press shows that, at that time, Jango was still grounding his policy on the many foundations of old labor.

Keywords: Seafarers strike, Joao Goulart, Union and popular press, Political historiography

Recibido: 16 mayo 2019 Aceptado: 22 julio 2019

Introduçao

O movimento grevista dos "trabalhadores do mar", que paralisou as atividades da marinha mercante por praticamente toda a extensao do litoral brasileiro, durante doze dias, em junho de 1953, entrou para a historia das lutas sindicais da República de 1946 pelo ineditismo da organizaçâo que uniu as muitas categorias marítimas em um único comando de greve, disposto a nao interromper a "mediçâo de forças"1 com o governo e o empresariado, até ver atendidas praticamente todas as suas reivindicaçoes. No entanto, a histórica greve de 1953, ainda tem sido majoritariamente estudada como um evento coincidente com as mudanças no primeiro escalao de governo do presidente Vargas (1951-1954), que permitiram a entrada de Joao Goulart, popularmente conhecido como Jango, no Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTCI).

O objetivo deste artigo é mostrar como a historiografia que privilegia a matriz do novo trabalhismo, cuja prova de fogo teria sido debelar a greve nacional dos marítimos, por meio de técnicas que evitassem o uso do aparato repressivo do Estado e oferecessem condiçoes para negociaçao dos direitos trabalhistas, deixou de lado o entendimento do papel exercido pelos próprios trabalhadores na conquista desses direitos, após um período de enfrentamentos, necessário para corrigir os equívocos deixados pelo próprio Jango. Esse período esteve situado no mês de outubro de 1953, quando os marítimos cobraram o acordo anteriormente firmado com os representantes patronais, conquistando muito daquilo que ainda permanecia em aberto. O silêncio historiográfico em torno dessa questao impede que se percebam as contradiçoes encontradas na transiçao do varguismo para o trabalhismo enquanto partido político organicamente vinculado ao campo das esquerdas, deixando a ilusao de uma passagem retilínea de um contexto ao outro.

A fim mostrar a forma como foi delineada a contradiçao entre o que a historiografia política escreve sobre este período e as fontes documentais consultadas nos jornais da imprensa sindical e popular, este artigo está desenvolvido em três partes.

Na primeira parte, é feita uma contextualizaçao do período que antecede a entrada de Joao Goulart no MTIC, considerando a ascensao da luta de classes e as dificuldades para se manter as práticas de controle corporativistas dos sindicatos.

1 BARSTED, Dénis Linhares. Mediçao de forças: o movimento grevista de 1953 e a época dos operarios navais. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 82.

Na segunda parte, apresentamos a estrutura argumentativa da historiografia política sobre a renovaçao do trabalhismo brasileiro durante o período em tela. Ressaltamos a procura desta historiografia em mostrar o papel exercido pelo estilo Jango de negociaçao com os trabalhadores enquanto um marco desta renovaçao, exemplificando-a com os resultados alcançados pelo acordo de sustaçao da greve dos marítimos, assinado em junho de 1953.

Na terceira parte, discutimos a forma como o jornal Orla Marítima representou a figura de Jango e as querelas em torno do movimento nacional dos marítimos. Essa fonte histórica é fundamental para oferecer um contraditório à historiografia que vem se debruçando sobre esse movimento pelo ángulo do "novo trabalhismo", evidenciando a imagem de Joao Goulart entre os trabalhadores.

Na parte final, enfatizamos a singularidade da greve de outubro de 1953, quando, por meio de um forte aparato repressivo, denunciado nos periódicos da imprensa sindical e popular, fica evidente a polaridade entre Jango e os marítimos. A hipótese da articulaçao com os trabalhadores em um projeto nacional-reformista, utilizada como argumento central na literatura sobre o tema, é refutada neste trabalho.

As greves no segundo governo Vargas e o declínio do corporativismo

A volta de Getúlio Vargas à chefia da naçao, após ter passado quinze anos na presidência da República (1930-1945), levou à composiçao de um governo contemporizador, disposto a reunir as principais forças político-partidárias, dentro de uma estratégia visando administrar as tensoes resultantes da associaçao do líder trabalhista com a imagem de um perigoso controlador das massas, capaz de levá-las a apoiá-lo em mais um empenho ditatorial, como havia sido o recém-encerrado período do Estado Novo (1937-1945).

Em sua nova passagem pelo poder, diante de tais circunstancias, Vargas teria pela frente o desafio de responder às demandas dos trabalhadores que dizia representar, tanto em razao de uma pauta económica, quanto de uma agenda mais ampla, reunindo aspectos organizativos e de interesse político, sem contrariar exageradamente os humores da classe patronal.

Em pouco tempo esse desafio sairia da caixa, manifestando-se por meio de uma quantidade cada vez maior de greves. O ano de 1951 registrou 173 movimentos paredistas, número superado no ano seguinte, quando as paralisaçoes atingiram a marca de 264.2 Essa crescente mobilizaçao resultou, em parte, do aperto sentido pela falta de reajuste do salário mínimo, ignorado durante todo o governo Eurico Dutra (1946-1950), mas também da necessidade de reagir às políticas antidemocráticas que atingiram os sindicatos durante a internalizaçao da Guerra Fria no Brasil, especialmente após os comunistas terem voltado para a ilegalidade.

Completada a primeira metade do século XX, vivia-se um nítido reaquecimento da luta de classes, agora em um novo ambiente institucional, delimitado no campo jurídico por um ordenamento liberal-democrático, embora contendo muitos dispositivos corporativistas, sobretudo para organizar o mundo do trabalho. O corporativismo, depois de orientar a guinada centralizadora do Poder Executivo na Era Vargas rumo à modernizaçao autoritária, ainda permanecia influente, mas subordinado aos ditames da Constituiçao de 1946. 3 A procura pela democracia social permanecia nos horizontes do varguismo, sendo esta acompanhada de uma expectativa do poder público por antecipar-se para evitar o confronto entre patroes e empregados. No entanto, o próprio desenvolvimento democrático mostrou o quanto seria difícil a tarefa.

2 TELLES, Jover. O movimento sindical no Brasil. Sao Paulo: LECH, 1981, p. 81.

3 STOTZ, Eduardo Navarro. Nacionalismo, intervencionismo estatal e expansao do movimento operario (1950-1955). In. Lobo, Eulalia Lahmeyer (Coord.) Rio de Janeiro operário: natureza do Estado, condiçoes de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Acess Editora, 1992, p. 226.

O ano de 1953 trouxera consigo a experiencia das greves de massa, a começar pela dos 300 mil, que paralisou o setor textil na cidade de Sao Paulo. A novidade desta greve foi a negaçâo da legislaçâo corporativista que impedia a formaçao de estruturas unificadoras da açao coletiva dos trabalhadores. É entao que surge o Pacto de Unidade Intersindical (PUI), permitindo a um único comando de greve responder por diversas categorias, levando-as a obter uma maior capacidade de pressao. A capacidade organizativa dos trabalhadores aumenta à medida em que a esquerda se recupera do baque sofrido pela suspensao do Partido Comunista, cujo resultado imediato foi o esvaziamento da vida sindical.

O período que antecede a arrancada das lutas de classe, no segundo governo Vargas, é marcado pela tentativa comunista de formar estruturas sindicais paralelas, em meio a uma continua intervençao policial e ideológica por parte do Estado. No entanto, como adverte Buonicore (2000), apesar do radicalismo imposto no discurso, havia uma duplicidade na política sindical comunista. Se, por um lado, esta "nao se prende ao sindicalismo oficial como única forma legítima de representaçao das classes trabalhadoras, por outro nao propoe a supressao do sindicalismo existente por um novo e, sim, um convivio entre ambos, e, por fim, a incorporaçao do último pelo primeiro".4

Essa estratégia irá se manifestar com maior clareza depois de abrandada a repressao imposta por Dutra, durante a conjuntura de 1953, quando ainda nao haviam sido completamente afrouxadas as correntes mais pesadas do corporativismo. Foi entao que, após intensa mobilizaçao por parte dos trabalhadores, tiveram inicio novas formas de diálogo com os representantes estatais, permitindo a reabilitaçao dos sindicatos enquanto espaço de atuaçao e procura de direitos. Conforme enfatiza Correa: "os frutos desses movimentos foram colhidos pouco tempo depois, quando grande número de trabalhadores aderiu aos sindicatos. O aumento dos operários sindicalizados veio acompanhado também de uma nova geraçao de sindicalistas comprometidos com o interesse da classe".5

A opçao de quebrar a estrutura sindical por dentro, apoiando-se muitas vezes nos seus próprios recursos, orientou a estratégia comunista, mas nao se limitou a isso. O protesto mediante a suspensao das atividades laborais entrava na conta, em definitivo, frustrando a economia simbólica do trabalhismo, embasada na "ideologia da outorga".6 Os trabalhadores organizados apoiaram o retorno de Vargas à presidencia, mas o queriam como alguém que os permitisse se expressarem.

É esse o jogo que irá se impor, daí em diante, mostrando o quanto é reducionista a tentativa de conceituar essas relaçoes como de caráter populista. Naquilo que mais nos importa, portanto, cabe dizer que haverá um declínio do corporativismo. Embora ainda continue em açao, sedimentado institucionalmente, o corporativismo perde o brilho de antes, determinando a decadencia dos seus agentes na conduçao das políticas trabalhistas. Esse ponto fica claro, por exemplo, ao pensarmos nas dificuldades encontradas pelo ministro Segadas Vianna, para conduzir as negociaçoes das muitas greves que encontrara pela frente, levando-o a ser substituído por Joao Goulart. Este declínio é caracterizado por uma perda de valor simbólico, resultante do desinvestimento que passa a ser feito no momento em que o corporativismo deixa de ser uma alternativa concreta e sistemica à democracia liberal e ao socialismo.

4 BUONICORE, Augusto César. Sindicalismo vermelho: a política sindical do PCB entre 1948 e 1952. Cadernos AEL, v. 7, n. 12/13, 2000, p.18. Disponível em https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/article/view/2485 [Acesso em 04/04/2018].

5 CORREA, Larissa Rosa. O corporativismo dos trabalhadores: leis e direitos na Justiça do Trabalho, entre o regime democrático e ditatorial militar no Brasil (1953-1978). Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre: Vol. 42, n. 2, maio/agosto de 2016, p. 509. Disponível em http: // revistaseletronicas.pucrs.brIojsIindex.php IiberoamericanaIarticleIviewI22494 [Acesso em 10/04/2018].

6 VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 31.

A greve dos marítimos de junho de 1953: crise do peleguismo, libertaçao dos sindicatos e a matriz historiográfica do novo trabalhismo

Iniciado logo após a greve dos 300 mil, o movimento dos "trabalhadores do mar" incorporou e radicalizou muitas de suas práticas, contribuindo para montar o acervo das relaçoes sindicatos-empresários-governos na República de 1946. Como vimos, o corporativismo, materializado na Consolidaçao das Leis Trabalhistas (CLT), na unicidade sindical, no imposto compulsório, nos institutos previdenciários e na Justiça do Trabalho, seria uma peça de difícil estocagem, mesmo que os próprios sindicalistas o tenham muitas vezes ostentado.7 No que toca, porém, o caso dos marítimos em greve, o cerne da questao esteve na substituiçao das lideranças pelegas, que agiam para evitar o conflito de interesses antagónicos, favorecendo a "paz social" e o incontornável controle do patronato sobre as exigências de seus empregados. A greve de junho impós novos atores políticos, substituindo aqueles que operavam a favor do Estado dentro dos sindicatos. A saída dos pelegos foi chamada de "libertaçao", nome bastante conhecido pela opiniao pública da época, pois foi usado também para tratar da retirada dos nazistas de territórios do leste europeu, durante o término da Segunda Guerra Mundial.

A saída dos pelegos favorecia demandas que previam derrubar as más condiçoes de trabalho em que viviam, sobretudo, os operários navais. Desse modo, tornou-se emblemática a eleiçao e posse da nova diretoria do Sindicato dos Operários Navais do Rio de Janeiro (SONRJ), após a greve dos marítimos, permitindo a entrada de uma liderança próxima ao Partido Comunista do Brasil (PCB), presidida por Irineu José de Souza. No entanto, é necessário afirmar que a incómoda presença dos pelegos começou a ser questionada antes mesmo da greve dos 300 mil. A esse respeito declarou o próprio Irineu José de Souza, em entrevista aos pesquisadores do Laboratório de História Oral e Iconografia da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF):

Na época, o presidente do sindicato era o Osvaldo Garcez, um servidor da Companhia Costeira. Mas ele nao queria seguir o que a classe propunha. Entao, quando foi uma tarde de 1952 mais ou menos, talvez porque eu já estivesse liderando alguma coisa lá no Lóide, eu fui trazido aqui por um grupo de companheiros para tirar o pelego do cargo. Ele foi tirado assim. Afastamos ele e eu fiquei dominando o sindicato. Sem ainda estar eleito, sem nada. Os companheiros me colocaram aqui por conta deles. 8

O caso narrado por Irineu José de Souza dá conta da sua entrada extralegal na presidência do SONRJ, antes da greve de 1953, quando seria oficializada essa situaçao. Deve-se frisar, entao, que a crise do peleguismo antecede a chegada de Joao Goulart no Ministério do Trabalho, sendo este, na condiçao de ministro, quem acabou legalizando o que já vinha ocorrendo por iniciativa própria dos trabalhadores. Perante esse quadro, se poderia perguntar: seria o estilo Jango (ou a forma janguista de negociaçao com os trabalhadores) responsável, por si mesmo, pelas mudanças que estavam ocorrendo nos sindicatos? Como será mostrado adiante, tudo leva a crer que nao. Essa percepçao, no entanto, diverge da tendência historiográfica identificada com a matriz do novo trabalhismo, encontrada nas pesquisas de Angela de Castro Gomes, Jorge Ferreira e Lucília Neves de Almeida Delgado. Para entender como se dá essa divergência será necessário rever a estrutura argumentativa desses autores.

7 GOMES, Angela Maria de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

8 Depoimento de Irineu José de Souza. In. GOMES, Angela Maria de Castro (Org.) A época dos operários navais. Niterói: Laboratório de História Oral e Imagem - LABHOI, 1999. Disponível em

http://www.labhoi.uff.br/sites/default/ffles/a epoca dos operarios navais angela de castro gomes.pdf [Acesso em 19/04/2018], p. 47.

A historiadora Ángela de Castro Gomes escreveu dois importantes trabalhos sobre a passagem de Joäo Goulart pelo Ministério do Trabalho. O primeiro deles, intitulado Getulismo e trabalhismo: tensöes e dimensöes do Partido Trabalhista Brasileiro (1987), foi escrito em parceria com Maria Celina Soares DvAraújo. Embora o texto nao se limitasse ao período ministerial de Jango, tendo estudado as relaçôes entre getulismo e trabalhismo após a queda do Estado Novo, este tratou de um ponto crucial para o entendimento dessa fase. Nele, as pesquisadoras do Centro de Pesquisa e Documentaçao de História Contemporánea do Brasil da Fundaçao Getúlio Vargas (CPDOC-FGV) abordaram o que seria o estilo do ministro na administraçao dos conflitos trabalhistas, definindo-o como mais informal e mais liberal no trato com as lideranças sindicais, afirmando, pela primeira vez, a existencia do estilo Jango.

Segundo as autoras supracitadas, Jango nao sabia apenas falar para os trabalhadores, mas ouvi-los também. Participando de um governo em crise, Goulart teve como missao reverter a impopularidade das políticas getulistas para o mundo do trabalho. As autoras procuraram mostrar que o jovem político gaúcho, natural da mesma cidade de origem de Getúlio Vargas, procurou cumprir esta missao derrubando as formas mais explícitas de controle sobre a classe trabalhadora.

O estilo Jango viria novamente à tona no capítulo redigido por Ángela de Castro Gomes para a coletánea motivada pela entrada do arquivo Joao Goulart no CPDOC/FGV. No livro Joao Goulart: entre a memoria e a história (2006), organizado por Marieta Morais Ferreira, a historiadora inicia o seu texto fazendo referencia ao período ministerial de Goulart como um "acontecimento biográfico". Cabe o destaque:

Nesse sentido, os oito meses de Ministério do Trabalho de Joao Goulart podem e 1235

devem ser considerados um "acontecimento biográfico", fundador da trajetória desse

político, num duplo sentido. Primeiro, pelas marcas que tal experiencia produziu na

construçao da sua imagem para si mesmo e para os seus aliados mais próximos,

destacando-se os membros do seu partido, o PTB. Uma imagem de político

nacionalista e reformista, que estava disposto a pagar um alto preço para se posicionar

ao lado dos trabalhadores - urbanos e rurais - ou, em suas próprias palavras, para

sustentar uma postura de "fidelidade à sua consciência". Segundo, pelos

desdobramentos que essa imagem provocou na movimentaçao de seus opositores -

no fragmento, os "entreguistas, golpistas e poderosos" - e que, desde de 1954, podiam

ser facilmente identificados como integrando um grupo de políticos civis,

particularmente da Uniao Democrática Nacional (UDN), de expressivos setores

militares e de fortes grupos empresariais.9

Considerando Goulart um político fiel à sua própria consciência, conforme ele mesmo a descrevia, Ángela de Castro Gomes o entende como um auténtico representante do nacional-reformismo, principal bandeira das lutas políticas da esquerda brasileira até o golpe de 1964. O período ministerial de Jango serve, segundo ela, para mostrar o quanto o político trabalhista teria sido mais do que um ministro do Trabalho, para se projetar como ministro dos trabalhadores. Na construçao dessa imagem, a presença de Goulart nas negociaçôes pertinentes à greve dos marítimos, evento que coincide com a sua entrada no MTIC, possui uma releváncia especial, sendo tratada com destaque no texto. Recorrendo a documentos guardados por Joao Goulart e ao depoimento do seu principal assessor administrativo, Hugo de Faria, a historiadora mostra que os dez dias em que Jango se dedicou exclusivamente à negociaçao com os marítimos serviram como um laboratório para introduzir as práticas adequadas a um estilo mais informal de se conversar com os trabalhadores. Dentro desse contexto, ela ressalta a importáncia do acordo assinado em 26 de junho de 1953, nas dependéncias do Ministério do Trabalho, tratando-o como resultado da habilidade do ministro para aumentar a sua popularidade, atestada em uma enquete

9 GOMES, Ángela Maria de Castro. Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos trabalhadores? In. Ferreira, Marieta Morais. Joao Goulart: entre a memória e a história Rio de Janeiro, Fundaçao Getúlio Vargas, 2006, p. 32.

produzida pelos "agentes de informaçao" ministeriais, guardada no arquivo Jango. Os resultados dessa enquete sao enfáticos em dizer que as "respostas eram unánimes, sendo o novo ministro recebido "com alegria e a certeza de que iria compreender" as justas demandas dos trabalhadores".10 O que a levou à seguinte interpretaçao:

(...) o que a atuaçao de Jango evidencia e a documentaçao atesta é que, desde antes de assumir o ministério, sua posiçao foi a de um mediador entre os sindicatos e o governo. Seu poder derivava de uma autorizaçao pessoal de Vargas, uma vez que era o presidente de um partido político, o PTB, e nao membro do staff governamental. A greve dos marítimos foi, portanto, uma espécie de prova de fogo, tanto para o ministro, quanto para uma nova estratégia política de lidar com a questao do custo de vida e das reivindicaçôes de lideranças sindicais, mesmo as que nao

ocupavam cargos de diretoria. 11

Embora a pesquisa da historiadora se estenda sobre todo o período em que Goulart esteve na direçao do MTIC, o retorno dos marítimos à greve, em outubro de 1953, nao é lembrado por ela. Talvez porque essa seja uma lembrança incómoda frente às suas conclusoes de que Jango optara, única e exclusivamente, pela trilha de uma "política de toleráncia" com os trabalhadores. 12 Tratando da saída do ministro, logo após o expressivo aumento de 100% do salário mínimo, ela escreve:

Nas palavras do próprio Jango, em seu pedido de demissao de 22 de fevereiro de 1954, "o verdadeiro sentido de minha atuaçao à frente do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio" era abrir "de par em par" as suas portas para os trabalhadores, para sentir de perto suas queixas e reivindicaçôes, o que se anteviu como uma orientaçao que desagradaria "às forças da reaçao", fazendo-as se voltar contra ele.13

Na argumentaçao contida no capítulo sobre as memórias do período ministerial de Joao Goulart, o foco da pesquisadora esteve centrado no que ele teria representado enquanto um político que, aproximando-se dos trabalhadores, era capaz de intimidar as elites económicas do país. Dentro de uma estratégia de renovaçao do trabalhismo, conferindo-lhe um novo sentido, que deixava para trás as formas mais tradicionais de liderança carismática, Jango abria oportunidades para os trabalhadores participarem da efetivaçao dos seus diretos, conclamando-os a fiscalizar a aplicaçao da CLT e a participar da administraçao dos fundos previdenciários. Para a autora, o posicionamento do ministro estaria de acordo com uma filosofia política que apostava na capacidade de organizaçao das classes populares, dentro da legalidade, contida em açôes, tais como o fim das intervençôes nos sindicatos e a suspensao, na prática, da exigência do atestado de ideologia. A lacuna deixada em relaçao à continuidade da greve dos marítimos, em outubro de 1953, serve para reforçar a hipótese de que o ministério Jango teria representado uma transiçao retilínea do varguismo para o trabalhismo organicamente vinculado ao campo da esquerda.

No livro O Imaginário Trabalhista (2005) o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jorge Ferreira, reuniu várias pesquisas integradas ao tema. No capítulo intitulado "O ministro que conversava", o estilo Jango volta à discussao e é contrastado, mais uma vez, com o velho modo de tratar os trabalhadores, ainda vigente na gestao Segadas Vianna. É o que se lê abaixo:

Nao demoraria muito para Goulart entrar em rota de colisao com Vianna, criticando-o publicamente por recorrer a métodos repressivos para conter a onda reivindicatória

10 Idem, pp. 42-43.

11 Ibidem, p. 43.

12 Ibidem, p. 43.

13 Ibidem, p. 4б.

do movimento sindical, em particular no caso dos marítimos. Vargas, em atitude ousada, para recuperar o seu prestígio entre os trabalhadores, desautorizou seu próprio ministro, obrigando-o a se demitir e nomeou Goulart para o Ministério do Trabalho, exatamente um ano após ascender à presidência do PTB. 14

O autor destaca que o jovem ministro do Trabalho valorizava, em primeiro lugar, a proximidade e o diálogo a qualquer tempo e circunstância com os representantes sindicais, deixando de lado a repressao física e ideológica. Seria ele o responsável pela aboliçao, na prática, do atestado de ideologia, documento exigido aos sindicalistas para exercerem as suas atividades; assim como das intervençoes nos sindicatos, mesmo se isso os fizesse mais próximos da influência comunista. Nao é difícil notar a coincidência da maior parte dos exemplos e argumentos de Jorge Ferreira e Ángela de Castro Gomes, levando-os a se posicionarem em uma mesma matriz interpretativa, que chamamos de historiografia do novo trabalhismo. Ambos irao destacar o pánico provocado nas elites económicas pela açao de Goulart no Ministério do Trabalho, especialmente a forma pela qual ele abria as portas da política e da administraçao pública para um novo conjunto de lideranças populares. Essas medidas anticontencionistas seriam importantes para mudar a correlaçao de forças no meio sindical, possibilitando a largada de uma frente de esquerda. Entretanto, cabe perguntar se elas representariam a totalidade das açoes do ministro na conjuntura aqui estudada?

O principal recurso de Jorge Ferreira para interpretar a passagem de Goulart pelo MTIC nao está na análise política stricto sensu. O autor se apoia em uma história cultural do político, desenvolvida em torno de conceitos como "imaginário" e "mitologias", para dar conta do pertencimento de Jango a uma 1237

geraçao que, lidando com a herança getulista, procurou oferecer ao trabalhismo um perfil ideológico mais consistente. Desta forma, ele ressalta que:

Recorrendo ao diálogo e à conciliaçao, mas igualmente a métodos centralizadores e instituindo a intoleráncia para conter os insatisfeitos com sua liderança na presidência do PTB, Goulart protagonizou um período de transiçao na história do trabalhismo brasileiro. 15

É na perspectiva de traçar a história do período ministerial de Goulart dentro de uma história mais ampla do PTB que se encontram as pesquisas de Jorge Ferreira e Ángela de Castro Gomes, nela incluindo a atuaçao e a resposta obtida por Jango nas negociaçoes relativas à greve dos marítimos. A perspectiva de ambos os historiadores nao coloca os trabalhadores no centro de suas pesquisas. Seus trabalhos visam discutir a projeçao e o sucesso da nova política trabalhista entre as classes populares.

O período ministerial de Jango foi também objeto de estudo da tese de Lucília Delgado, publicada em livro com o título PTB: Do getulismo ao reformismo (1989). Esta pesquisa no campo da ciência política procurou mostrar a história desse partido político de maneira plural, destacando as suas diversas linhagens e, sobretudo, o processo que levou do getulismo ao reformismo. É nesse ponto de mutaçao que se situa a passagem de Goulart pelo MTIC, conferindo-lhe assim um lugar de destaque dentro da obra. A autora defende que o ministro do Trabalho de Getúlio Vargas revitalizou o Partido Trabalhista, dando a largada para uma atitude reformista, que deixaria para trás os velhos ditames do getulismo. Daí em diante, os trabalhistas apostaram em uma maior concessao de direitos para os trabalhadores organizados, dialogando com os seus mais diversos representantes, inclusive comunistas. Nesse contexto, a greve dos marítimos é colocada como um evento que explicitou as divergências entre Vargas e o entao ministro Segadas Vianna, obrigando-o a uma mudança de rumos.

14 FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 2005, p. 103.

15 Idem, p. 121.

A greve de junho entra na obra de Lucília Delgado como exemplo da implantaçâo de uma nova política trabalhista, disposta a negociar direitos e vantagens para os trabalhadores. Ela ressalta, porém, que essa mesma política também procurou cooptar as lideranças disponíveis e neutralizar aquelas mais radicais. Em suas palavras:

Se analisarmos a gestâo Goulart da perspectiva governamental, chegaremos à conclusâo que o agir administrativo-político do novo ministro inseriu-se numa dinámica na qual questôes de variada ordem se conjugaram em um processo que procurava criar condiçoes favoráveis para manutençâo do poder nas mâos do Presidente Vargas. No contexto do segundo governo de Getúlio Vargas, voltava a ser usada a mesma tática, em busca da manutençâo e do controle do poder político, que havia sido acionada no contexto de queda do Estado Novo: posiçoes relativamente "avançadas" foram assumidas, procurando manter a continuidade de pequenas transformaçoes e concessoes. Nessa dinámica, a concessâo de vantagens e beneficios era uma tática que nâo poderia ser desprezada, pois seu poder de cooptaçâo e neutralizaçâo de "açoes radicais" era real. Em consonáncia com essa linha, logo que assumiu o ministério, negociou com os marítimos em greve, atendendo a maior parte de suas negociaçoes.16

Apropriando-se do conceito de "populismo" como chave explicativa para desvendar a açâo política do segundo governo Vargas, Lucília Delgado utiliza-o para ressaltar o caráter ambíguo da administraçâo janguista. A autora, embora também possa ser incluída na matriz historiográfica do novo 1238

trabalhismo, avalia o estilo Jango de um modo mais rigoroso, com base nas vertentes da mobilizaçâo e do controle, mostrando uma forte combinaçâo entre as duas. É deste modo que ela escreve, ainda que em poucas linhas, sobre a greve de outubro, afirmando que para contê-la "Goulart nâo hesitou em acionar os esquemas de controle e coerçâo da sua pasta: a intervençâo e a repressâo".17

Concluindo esta seçâo, devemos lembrar que a atuaçâo de Joâo Goulart no Ministério do Trabalho nâo deixou de estar pautada naquilo que Maria Celina Soares DvAraújo (1982) chamou, na tentativa de definir a açâo política do segundo varguismo, de estratégia do "consenso máximo".18 O que queremos dizer com isso é que o ministro procurou satisfazer ambas as partes do conflito trabalhista, dentro de um expediente que jogou muitas vezes com a expectativa da obtençâo de direitos, garantias e vantagens para os assalariados, nem sempre efetivadas e cumpridas, mesmo depois de acordadas. Exemplo mais do que suficiente dessa prática se encontra no acordo que fechou o primeiro tempo da greve dos marítimos. Nos meios políticos trabalhistas, este foi visto como um sucesso inquestionável, divulgado intensivamente para o público mais amplo por meio da principal mídia impressa governista, o jornal Última Hora. Entre os marítimos, porém, a sua aceitaçâo seria muito mais reticente, conforme se pode observar na pesquisa do seu jornal de classe.

O Jango de Orla Marítima

O jornal Orla Marítima foi um periódico que representou os trabalhadores marítimos, sendo, porém, organizado pelo segmento dos capitâes de náutica. Esses trabalhadores eram os melhor remunerados e os mais escolarizados dentre os marítimos. Eles também possuíam autoridade dentro das embarcaçoes, garantindo-lhes o poder sobre o tráfego naval em toda extensâo da costa brasileira. O diretor-responsável pelo jornal era o capitâo Emílio Bonfante Demaria, destacado ativista da greve de

16 DELGADO, Lucília Neves. PTB: do getulismo ao reformismo. Sao Paulo: Marco Zero, 1989, p. 137.

17 Idem, p. 150.

18 D^ARAUJO, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas (1951-1954). Democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982, p. 113.

junho, sendo Armando Zanini Filho o redator-chefe e Celso Maio o secretário-geral. Essa fonte histórica será fundamental para oferecer um contraditório à historiografía que vem se debruçando sobre o movimento dos marítimos pelo ángulo do "novo trabalhismo", mostrando a imagem de Joao Goulart traçada pelos trabalhadores.

A hipótese aqui defendida é a de que o papel do ministro do Trabalho, no que toca à crise do peleguismo, ou seja, o afastamento deste dos sindicatos, e o arranque da luta de classes durante o segundo governo Vargas teria sido considerado menor entre os marítimos do que imagina a historiografía dominante, ainda mais quanto à sua capacidade de mediaçao dos conflitos sem imposiçao da força. Uma leitura atenta da coleçao desse periódico, depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, destaca a organizaçao de classe dos trabalhadores do mar, em contraste com uma representaçao negativa do ministro do Trabalho.

Os pontos acima descritos indicam a distáncia entre as práticas sindicais em uso pelos marítimos e o modelo de "sindicalismo populista", proposto a partir dos estudos de Francisco Weffort sobre o populismo na política brasileira do período entre 1946 e 1964. Como aponta Marcelo Badaró de Mattos, esse modelo interpretativo acentua a "inconsistencia organizatória" nos locais de trabalho, em detrimento das açoes vinculadas à "estrutura sindical oficial", reduzindo assim, por meio de negociaçoes "pelo alto", os "conflitos diretos entre o capital e o trabalho". 19 Nao é o que encontramos ao olharmos para os marítimos, uma das categorias mais antigas de trabalhadores nacionais, instalados nas docas e estaleiros da Baía de Guanabara desde os tempos coloniais, tendo passado por diversas experiencias organizativas, políticas e ideológicas, envolvendo o mutualismo, o anarco-sindicalismo e o comunismo.20 No decorrer do tempo, eles acumularam e solidificaram formas de solidariedade de classe que nos permitem dizer que difícilmente poderiam estar sendo inventados. As exigencias feitas no "Memorial dos 25 itens", entregue para Joao Goulart em junho de 1953, demonstram uma visao aguda sobre os problemas quotidianos, tais como a melhoria da alimentaçao servida pelas empresas e a regulamentaçao do trabalho a bordo dos navios mercantes. A promoçao de novos espaços organizativos de base, dentro dos locais de trabalho, nos leva a conhecer o potencial criativo desses trabalhadores, que se reuniam para discutir direitos nao apenas dentro dos sindicatos, criando os conselhos de fábrica e as praças de liberdade sindical. Voltemos agora ao jornal que nos serve de referencia nessa pesquisa.

Na coluna Pau Neles, de Armando Zanini Filho, publicada no primeiro número do jornal (14/08/1953), temos uma longa análise do papel de Goulart durante a greve. O título por si só demonstra a contrariedade dos marítimos em relaçao ao ministro: "Um terremoto abalou o país: caiu a pesadíssima máscara de Jango". O articulista acusava Goulart de agir com dubiedade em relaçâo à escolha do novo presidente da Federaçao Nacional dos Marítimos (FNM), disputada por um dos expoentes da greve de junho: o comandante Emílio Bonfante Demaria. Após ter prometido a mais ampla liberdade sindical, o ministro estaria protelando as eleiçoes naquele órgao para apoiar uma "junta peleguista". Em sua coluna, Zanini apontava a dubiedade como uma marca indelével da passagem de Jango pelo ministério.

Para o redator-chefe daquele órgao de classe, o ministro queria "aparecer ante o povo como o homem que atendeu às reivindicaçoes dos marítimos", enquanto colocava na federaçao "uma junta de 'Laranjeiras-mirins', que serao mais Laranjeiras que o próprio Laranjeiras". 21 Uma outra denúncia de Zanini Filho, ainda mais grave, envolvia um acordo promovido por Goulart com diversas lideranças sindicais, que assumiam "o compromisso de nao medir esforços no sentido de que suas classes ajam de

19 MATTOS, Marcelo Badaró. Novos e velhos sindicalismos; Rio de Janeiro (1955/1968). Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 1998, p. 58.

20 PESSANHA, Elina. Niterói operario: o caso dos trabalhadores da industria naval. In. Martins, Ismenia de Lima e Knauss, Paulo. Cidade múltipla: temas da historia de Niterói. Niterói: Niterói Livros, 1997, p. 151.

iНе можете найти то, что вам нужно? Попробуйте сервис подбора литературы.

21 ZANINI FILHO, Armando. Um terremoto abalou o país: caiu a pesadíssima máscara de Jango. Orla Marítima, 14/08/1953, p. 2.

acordo com os interesses do ministério",22 ou seja, nao partissem para uma nova greve, mesmo se os pontos anteriormente definidos com o patronato nao fossem cumpridos. Era contra o surgimento de um peleguismo de novo tipo que se voltava o jornal, a ponto de pedir que o ministro renunciasse, depois da queda da sua máscara de "milhares de toneladas". Essas representaçoes sao importantes para pensarmos nas razoes da eclosao de uma nova greve, pouco tempo depois do sugerido sucesso negocial de Jango. Visto dessa forma, será tao simples dizer que o ministro se movia com firmeza nas águas turvas das relaçoes trabalhistas?

O outubro dos marítimos

O nao cumprimento de pontos fundamentais do acordo firmado em 2б de junho de 1953 levou os trabalhadores da Marinha Mercante a uma nova greve geral, no mês de outubro. Esquecido pela historiografia que trata a greve dos marítimos como parte da trajetória do "novo trabalhismo", esse segundo movimento realça a visao predominante acerca de Jango entre as lideranças mais atuantes na imprensa sindical, assim como a truculência usada pelo aparato repressivo do Estado para contê-las.

Descrentes da política do Ministério do Trabalho, os editores de Orla Marítima chamavam atençao para o fato de Goulart ter atuado muito mais pelos patroes ao negociar o desfecho da primeira greve nacional dos marítimos. O sucesso da empreitada que levou os trabalhadores à mesa de negociaçao teria como preço inibir novas investidas no conflito de classes. É o que depreendemos, mais uma vez, da consulta à coluna assinada por Armando Zanini Filho. Nela, o articulista expós da seguinte forma o pensamento da classe empresarial, e de seus representantes na esfera do governo, em relaçao à greve de junho:

Durante a greve diziam nossos inimigos (Paulo Ferraz, Issac Cunha, Hugo de Faria,

Waldemar Motta e companhia) com ares tristes:

- Vocês conseguiram uma uniao extraordinária e uma greve sem precedentes...

E depois — enquanto uma sensaçao de sádico êxtase dominava todo o corpo —

acrescentavam:

- Porém, jamais conseguirao fazer outra igual 23

A polêmica encontrada em Orla Marítima nos leva a pensar se Jango conseguiu, de fato, convencer o pessoal da marinha mercante do seu papel na luta contra os pelegos, pela libertaçao dos sindicatos e pela entrada dos trabalhadores em uma era de reconhecimento público de suas demandas e reivindicaçoes. A denúncia sobre a queda da sua "pesadíssima máscara" é uma representaçao mais do que clara do quanto havia de resistência dos setores mais organizados dos trabalhadores do mar. Essa representaçao ganha mais expressividade quando acrescida da leitura do novo Manifesto do comando nacional de greve, publicado na folha marítima em 01I10I1953. Nele se questiona o papel do Ministério do Trabalho nas articulaçoes jurídico-políticas que permitiam a sobrevivência do renegado Joao Batista de Almeida, vulgo Laranjeiras, na diretoria da Federaçao Nacional dos Marítimos, em uma das suas "mais abjetas manobras". 24

Esse seria apenas um dos aspectos, embora dos mais significativos, da percepçao dos marítimos e suas classes anexas quanto ao desrespeito com o qual o governo trabalhista os vinha tratando. A necessidade de uma nova greve, porém, seria fruto principalmente do nao cumprimento das cláusulas

22 Idem. O acordo foi publicado também nessa ediçao, sob o título de "documento degradante". Entre os que o assinaram estiveram os presidentes dos sindicatos dos oficiais de máquinas, foguistas, taifeiros, carpinteiros navais, comissários, radiotelegrafistas, marinheiros, conferentes, motoristas e condutores, empregados de escritório, práticos e mestres de cabotagem. Era com essas lideranças que Goulart pretendía desenvolver um sindicalismo "sadio", capaz de medir forças com os comunistas.

23 ZANINI FILHO, Armando. Voltaremos à greve. Orla Marítima, 01/10/1953, p. 3.

24 Novo manifesto do comando de greve. Orla Marítima, 01/10/1953, p. 11.

encontradas no acordo anterior, assinado em 26 de junho de 1953. É o que fica exposto na matéria que compoe a manchete de capa do jornal Orla Marítima, publicada na véspera do retorno dos marítimos à greve:

Há quatro meses, portanto, que esperamos pacientemente pelos pagamentos acordados e que nos sao devidos alguns desde quinze de novembro de 1948, por força de lei e decisao judicial.

Durante todo esse tempo o ministro do Trabalho vem distribuindo notas oficiais, pela imprensa falada e escrita, declarando que todas as reivindicaçoes dos marítimos foram atendidas! Mas que lidas atentamente revelam a mentira.

Destarte, concluímos que tais notas destinam-se a confundir a opiniao pública que na última greve solidarizou-se com a causa dos marítimos, por ser justa; pois que aos marítimos nao enganam tais notas, simplesmente porque ao receberem seus envelopes de pagamento mensal, nele nao encontram todo o dinheiro a que tem direito. 25

Os marítimos procuravam mostrar que havia uma distáncia entre a propaganda e a realidade das açoes ministeriais. A fama do ministro negociador nao parece, desse ponto de vista, ter chegado ao público por ele representado. A prisao de vários representantes dos marítimos, inclusive participantes do jornal aqui estudado, como é o caso de Arnaldo Zanini Filho, preso no início de outubro, mostra o uso do braço repressivo do Estado, em sintonia com os interesses empresariais. Além disso, encontramos nas páginas de Orla Marírtima reportagens sobre a repressao das formas organizativas dos locais de trabalho que brotaram da greve de junho, como a prisao do operário naval Degenildo da Silva Pinto, responsável pela criaçao de um conselho de fábrica no Dique Lahmeyer. Segundo Barsted, no único estudo que se aprofunda nos acontecimentos de outubro de 1953, no momento em que a nova paralisaçao por tempo indeterminado foi decidida, o Sindicato dos Marinheiros, local da assembleia que deflagrou o movimento, foi invadido por policiais e fuzileiros navais, que agiram violentamente, prendendo e espancando diversas pessoas. 26 Essas e outras situaçoes nos mostram a releváncia do uso da imprensa sindical e popular como fonte histórica para se compreender melhor esse período, em que as novas lideranças trabalhistas levantaram alternativas políticas nacional-populares, muitas vezes à revelia dos seus próprios representados.

Em uma outra mídia impressa consultada, o jornal Imprensa Popular, encontramos críticas ainda mais pesadas ao ministro Joao Goulart. O jornal publicado pelo PCB na cidade do Rio de Janeiro levantou o aspecto fascista da nova política trabalhista de Vargas. A açao extremamente repressiva do governo Vargas em relaçao à greve de outubro de 1953, foi completamente diferente da sua açao conciliadora, negociada por Jango na greve de junho do mesmo ano. O estilo Jango parece ter sucumbido aos projetos de Vargas. A proposta de negociar com os trabalhadores nao prevaleceu nesta segunda greve de 1953. A severa repressao sobre estes grevistas, bem como a denúncia de que este governo era uma farsa no que se refere ao diálogo com a classe trabalhadora aponta muito mais do que um acordo pacífico. As falas dos operários navais, registradas nesse jornal, no dia 21 de outubro de 1953, na matéria intitulada "Trama fascista de Vargas e Jango", apontam para a violência impetrada contra os grevistas, bem como denunciam a farsa que seria o diálogo do governo com a classe trabalhadora. O que mais surpreende neste registro jornalístico é a denúncia das práticas de tortura dentro de navios de guerra da Marinha. Operários navais teriam sido carregados para o interior dessas embarcaçoes, onde passaram dias sendo torturados. Jango desta vez nao se dedicou, como em junho, a negociar junto aos grevistas, pelo contrário, estava licenciado do cargo, viajando pelos estados do norte e nordeste.

A violenta reaçao estatal contra o segundo tempo da greve dos marítimos, à exceçao da dissertaçao de Denis Barsted, publicada em 1981, vem sendo terminantemente esquecida pela histografia,

25 Motivo da nova greve geral dos marítimos! Orla Marítima, 15/10/1953, p. 1.

26 BARSTED, Op. Cit, p. 165-166.

sobretudo a que trata desse período pelo viés da história política. Por que essa historiografia prefere silenciar diante disso? O retorno à repressao policial, após um breve intervalo em que o estilo Jango entrou em cena, contraria as expectativas em torno do novo trabalhismo. Sabe-se, porém, que a escolha do que deve ser silenciado e esquecido é, por si só, um ato político. O desinteresse de parte da historiografia quanto à repressao praticada no segundo governo Vargas, e o silêncio do ministro do Trabalho durante a greve dos marítimos de outubro de 1953, sao sintomas da produçao de um silenciamento que busca esvaziar as contradiçoes em torno da nova política trabalhista. Os autores deste artigo, no entanto, entendem que estas contradiçoes sao um campo oportuno para a compreensao das relaçoes entre Estado e sociedade no Brasil da metade do século XX.

Bibliografia

Barsted, Denis Linhares. Mediçao de forças: o movimento grevista de 1953 e a época dos operários navais. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Buonicore, Augusto César. Sindicalismo vermelho: a política sindical do PCB entre 1948 e 1952. Cadernos ABL, v. 7, n. 12|13, 2000, pp. 15-44. Disponível em

https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ael/artide/view/2485 [Acesso em 04|04|2018]. Corrêa, Larissa Rosa. O corporativismo dos trabalhadores: leis e direitos na Justiça do Trabalho, entre o regime democrático e ditatorial militar no Brasil (1953-1978). Bstudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: Vol. 42, n. 2, p. 500-52б, maio|agosto de 201б. Disponível em

http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/artide/view/22494 [Acesso em 1242

10|04|2018].

D'Araújo, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas (1951-1954). Democracia, partidos e crise política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

Delgado, Lucília Neves. PTB: do getulismo ao reformismo. Sao Paulo: Marco Zero, 1989.

Ferreira, Jorge. O imaginario trabalhista. Getulismo, PTB e cultura política popular, 1945-19б4. Rio de Janeiro:

Civilizaçao Brasileira, 2005.

Gomes, Angela Maria de Castro e D'Araújo, Maria Celina Soares. Getulismo e trabalhismo: tensoes e dimensoes do Partido Trabalhista Brasileiro. Rio de Janeiro: Fundaçao Getúlio Vargas, 1987.

_. (Org.) A época dos operarios navais. Niterói: Laboratório de História Oral e Imagem -

LABHOI, 1999. Disponível em

http://www.labhoi.uff.br/sites/default/files/a epoca dos operarios navais angela de castro gomes.pdf [Acesso em 19|04|2018].

_. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

_. Memórias em disputa: Jango, ministro do Trabalho ou dos trabalhadores? In. Ferreira,

Marieta Morais. Joao Goulart: entre a memória e a história Rio de Janeiro, Fundaçao Getúlio Vargas, 200б. Pessanha, Elina. Niterói operário: o caso dos trabalhadores da indústria naval. In. Martins, Ismênia de Lima e Knauss, Paulo. Cidade múltipla: temas da história de Niterói. Niterói: Niterói Livros, 1997, pp. 131-1б8. Stotz, Eduardo Navarro. Nacionalismo, intervencionismo estatal e expansao do movimento operário (19501955). In. Lobo, Eulália Lahmeyer (Coord.) Rio de Janeiro operario: natureza do Estado, condiçoes de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Acess Editora, 1992, pp. 222-2б5. Telles, Jover. O movimento sindical no Brasil. Sao Paulo: LECH, 1981. Vianna, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 197б.

Fontes

Cole^ao do jornal Orla Marítima, se^ao de Periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Cole^ao do jornal Imprensa Popular, se^ao de Periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Disponível

em http://bndigital.bn.br/acervo-digital/imprensa-popular/108081

[Acesso em 20/03/2019].

i Надоели баннеры? Вы всегда можете отключить рекламу.