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De um problema social a um trabalho que nao coopera para o capital: a regulamentagao do servido doméstico durante o contexto de criagao da legislado
social brasileira
From a social problem to labor that does not cooperate with capital: the regulation of domestic service during the context of the creation of Brazilian social legislation
Flavia Fernandes de Souza*
Resumo: O objetivo deste artigo é recuperar debates, projetos e medidas para regulamentagao do trabalho doméstico remunerado no contexto de elaborado das leis trabalhistas brasileiras durante a chamada Era Vargas (1930-1945). A hipótese que orienta a análise, a qual se fundamenta em fontes primárias oriundas da imprensa e de documentos legislativos, é a de que apesar da existencia de um cenário favorável para a construgao de leis que garantiam determinados direitos aos trabalhadores urbanos assalariados, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) foram colocadas(os) a margem desse processo, sendo excluídas(os) da legislagao social. Em consequencia, o servigo doméstico continuou a ser alvo de uma regulamentagao própria, caracterizada por políticas de controle social, de caráter policial e sanitário, defendidas desde o final do século XIX, sobretudo na entao capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, mas cujos principios e justificativas eram, a partir dos anos 1930, redefinidos em consequencia da consolidagao do capitalismo no Brasil.
Palavras-chave: Brasil; Era Vargas; legislagao trabalhista; trabalhadoras(es) domésticas(os); regulamentagao.
Abstract: The objective of this article is to recover debates, projects and measures for the regulation of paid domestic work in the context of the elaboration of Brazilian labor laws during the so-called "Vargas Era" (1930-1945). The hypothesis that guides the analysis, which is based on primary sources from the press and legislative documents, is that despite the existence of a favorable scenario for the construction of laws that guaranteed certain rights to salaried urban workers, the domestic workers were placed on the sidelines of this process, being excluded from social legislation. As a result, domestic service continued to be the target of its own regulation, characterized by policies of social control, of a police and sanitary nature, defended since the end of the 19th century, especially in the then capital of the country, the city of Rio de Janeiro, but whose principles and justifications were, from the 1930s on, redefined as a result of the consolidation of capitalism in Brazil.
Keywords: Brazil; "Era Vargas"; labor legislation; domestic workers; regulation.
Recibido: 25 de marzo 2022 Aceptado: 19 junio 2022
* Brasileira. Doutora em Historia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente desenvolve estágio pós-doutoral na mesma universidade, sendo bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenado de Aperfei^oamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD-Capes). E-mail: flaviasza@yahoo.com.br / Orcid: https: / /orcid.org/0000-0002-9146-5211
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Uma questao de controle ou de direitos?
Em dezembro de 1938, a Comissao Especial de Legislado Social, cuja fungao era estudar os assuntos legislativos de caráter trabalhista durante o Estado Novo, discutiu sobre a regulamentagao federal do chamado servigo doméstico. O projeto em pauta havia sido originalmente elaborado em 1935, ainda durante o governo constitucional de Getúlio Vargas, por uma comissao de deputados em que era relator Alberto Surek (deputado de orientagao trabalhista), e, entre outras coisas, visava a estabelecer a obrigatoriedade do uso de uma carteira profissional pelas(os) trabalhadoras(es) domésticas(os); os termos dos contratos de locagao de servigos; os deveres de patroes e empregados; e, especialmente, a concessao de férias anuais de quinze dias para as pessoas ocupadas no trabalho doméstico remunerado.1
Nos meses seguintes, já no ano de 1939, o projeto foi alvo de debates entre os membros que compunham a referida comissao, os quais tiveram ampla repercussao na imprensa. Em meio as discussoes, no dia 22 de margo, Surek estabeleceu o seguinte diálogo com outro integrante da Comissao Especial de Legislagao Social, o deputado Ozéas Motta (representante da classe patronal):
O sr. Alberto Surek — (...) O que pretendo é ampliar os servigos da carteira profissional, instituidos, desde 1923, pela polícia do Distrito Federal para as grandes cidades do país.
O sr. Ozéas Motta — O sr. chefe da polícia me informou que esses servigos existem, mas com outra finalidade: a de separar o joio do trigo. O sr. Alberto Surek — É precisamente esse o ponto visado pelo projeto, que fará a selegao apontada pelo sr. chefe de polícia.
O sr. Ozéas Motta — As autoridades querem ter o 'controle'. Isso é muito diferente do que se pretende aqui: dar direito a efetividade, férias e a uma série de beneficios outros, quando, de acordo com o já resolvido nas Conferencias de Trabalho — conforme o sr. presidente já referiu aqui — o caso dos domésticos nao está incluído na legislagao trabalhista. Porque eles nao trabalham para o indivíduo que procura lucro no exercício de uma profissao ou de uma atividade qualquer, o que dá caraterística social da cooperagao do trabalho com o trabalho.
O ministro Salgado Filho — Exatamente. Nao sao cooperadores do capital. O sr. Alberto Surek — O projeto contém dois dispositivos importantes, que para a atual carteira nao existem: os atinentes a folha corrida e ao exame de saúde. E como a carteira da polícia só serve para o Distrito Federal, e este nao é o Brasil, tenciono estender as providencias a todo o país. Este é ponto fundamental do projeto, na parte relativa a carteira profissional. Quanto aos demais dispositivos sobre benefícios, a Comissao naturalmente também resolverá. O que desejo, repito, é melhorar a situagao, fazendo com que vigorem em todo território nacional as normas já consagradas na lei de 1923. O sr. Ozéas Motta — Como tive ensejo de afirmar de outra feita, poucos sao os trabalhadores que tem situagao melhor do que a dos domésticos,
1 O Jornal, 28 de dezembro de 1938, 4.
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principalmente na capital federal. Estes, aqui, sao verdadeiros 'príncipes' e 'princesas'.
O sr. Alberto Surek — Trata-se, apenas, de anteprojeto; nada está resolvido; vamos ainda proceder ao estudo. O que desejo — torno a dizer — é dar a medida maior amplitude.
O sr. Ozéas Motta — Como acaba de lembrar o ilustre colega, eles 'comem de colher'... (risos)2
O debate estabelecido entre Surek e Motta, em torno do projeto apresentado a Comissao Especial de Legislagao Social, sintetiza um conjunto de questoes que estavam de longa data presentes nas discussoes acerca da regulamentagao do servigo doméstico no Brasil, em especial na entao capital federal, a cidade do Rio de Janeiro. Entre os principais tópicos presentes na discussao encontrava-se, como dito, a proposta do uso obrigatório de carteira profissional, mas que no caso das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) só poderia ser concedida por meio de atestados de antecedentes criminais, passados por autoridades policiais, e comprovantes de vacina e boa saúde, fornecidos em instituigoes médico-sanitárias.
Além disso, no diálogo ocorrido entre os membros da comissao responsável pela elaboragao da legislagao social brasileira, foi também debatido o aspecto da especificidade da condigao das(os) empregadas(os) domésticas(os) em relagao aos demais trabalhadores assalariados brasileiros. Particularidade esta debatida em termos da natureza do trabalho — que, segundo o ministro Salgado Filho, nao cooperaria para o capital — e dos supostos privilégios que possuiriam aquelas(es) que se encontravam empregadas(os) na prestagao de servigos pessoais nos domicílios. Nesse sentido, ressalta-se também alguns elementos indicativos dos preconceitos direcionados as(aos) trabalhadoras(es) domésticas(os), ao serem ironicamente comparadas(os) a "príncipes e princesas" e pejorativamente acusados de "comerem de colher".
Contudo, para além dessas questoes, o diálogo travado entre Surek e Motta também evidencia um impasse sobre os princípios que deveriam nortear a regulamentagao do trabalho realizado pelas(os) empregadas(os) domésticas(os). Tais princípios envolviam a dúvida sobre o fato de a regulagao das relagoes de trabalho serem orientadas por uma perspectiva de controle social ou de garantia de direitos trabalhistas. Afinal, de um lado, eram feitas referencias ao Decreto Federal de 1923, que regulava a locagao de servigos domésticos no Distrito Federal e determinava, entre outras coisas, a instituigao de um mecanismo policial de identificagao e de vigilancia das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os), visando, como colocado pelo deputado Ozéas Motta, a separagao "do joio do trigo". Enquanto, de outro lado, encontrava-se o sentido da efetividade da garantia de direitos as(aos) empregadas(os) domésticas(os), como era o caso do direito de férias, proposto no projeto apresentado pelo deputado Alberto Surek.
Tendo como ponto de partida tal discussao, ocorrida entre os membros da Comissao Especial de Legislagao Social, no final da década de 1930, o objetivo deste artigo é apresentar um panorama histórico dos debates, projetos, iniciativas e medidas para regulagao das relagoes de trabalho estabelecidas entre patroes(oas) e trabalhadoras(es) domésticas(os) no contexto de elaboragao da legislagao social durante a chamada Era Vargas. A hipótese que orienta as análises e as reflexoes aqui realizadas é a de que apesar da existencia de um cenário favorável para a elaboragao de leis que garantissem determinados direitos aos trabalhadores urbanos assalariados, o trabalho doméstico remunerado foi colocado a margem de tal processo, sendo alvo de uma regulamentagao própria.
2 Diário da Noite, 23 de margo de 1939, 1.
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No contexto de construyo da legislagao social brasileira (trabalhista, sindical e previdenciária), as(os) empregadas(os) domésticas(os), ao contrário dos demais trabalhadores urbanos, foram excluídas(os) do conjunto das leis trabalhistas e permaneceram sob políticas de controle social que vinham sendo elaboradas desde o final do século XIX, quando da aboligao da escravidao. Essas políticas de controle eram baseadas em relagoes sociais historicamente fundamentadas em desigualdades e discriminagoes de cunho patriarcal, escravista e racial, mas cujos principios e justificativas eram, a partir das décadas de 1930 e 1940, redefinidos em consequencia da consolidagao do capitalismo no Brasil. Afinal, ao mesmo tempo que esse modo de produgao se aproveitava do trabalho doméstico, remunerado e nao remunerado, para a reprodugao do sistema como um todo, ele negava o seu reconhecimento económico e social oprimindo suas(seus) trabalhadoras(es).
Com tal proposta, o texto se divide em tres momentos. No primeiro recupera-se a forma como os projetos e as iniciativas de regulagao das relagoes de trabalho doméstico remunerado foram tratadas durante os governos de Vargas, estabelecendo para isso alguns paralelos com períodos anteriores. No segundo momento do texto é realizada uma análise acerca das mudangas nas justificativas que foram mobilizadas por legisladores e grupos intelectuais e dirigentes visando a exclusao das(os) empregadas(os) domésticas(os) do universo dos direitos sociais, tendo em vista uma longa trajetória de tentativas de regulamentagao do servigo doméstico, sob o viés do controle social, entre o fim do período imperial e a chamada Primeira República no Distrito Federal. Por fim, empreende-se uma reflexao conclusiva sobre o papel do trabalho doméstico remunerado no desenvolvimento do capitalismo no Brasil entre os anos 1930 e 1940.
Regulamentagao e exclusao: antigos projetos e velhas iniciativas
Como é fato conhecido, a década de 1930 marca o período histórico de construgao da legislagao social brasileira. Embora as primeiras medidas em relagao ao assunto tenham sido formalmente tomadas a partir de final dos anos 1910 — em uma conjuntura de intensa agitagao operária e quando a chamada questao social passou a ser reconhecida como um problema de interesse patronal e de responsabilidade estatal —, foi entre os anos 1930 e 1937 "que a maioria absoluta de todas as leis sociais teve sua concepgao e implementagao decidida, regulamentada e fiscalizada", como lembra a historiadora Angela de Castro Gomes.3 Em um momento político e económico de grandes mudangas, sob o impulso do movimento operário, o controle da burguesia urbana e o renovado interesse do Estado — que se tornava politicamente mais centralizador e economicamente mais interventor — na regulagao do mercado de trabalho, o decenio de 1930, portanto, compreendeu um momento de intensificagao da elaboragao e da aplicagao das leis de cunho trabalhista, sindical e previdenciário no Brasil.
A proposta do recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio de regularizar as relagoes entre o capital e o trabalho se evidenciou logo no governo provisório (1930-1934). O primeiro-ministro do trabalho, Lindolfo Collor, no início de sua gestao, organizou comissoes para o estudo e a reformulagao das leis sociais que seriam decretadas. Já no ano de 1931, entao, foram elaborados anteprojetos e promulgadas duas leis: a de sindicalizagao, em margo de 1931, e a de nacionalizagao do trabalho, em agosto do mesmo ano.4 O ritmo intenso de trabalhos para o estabelecimento de uma legislagao social continuou sob a gestao de Salgado Filho, quando vários decretos foram assinados a respeito de assuntos como: os horários de trabalho no comércio e na indústria; a regulamentagao do trabalho de mulheres e dos menores de idade; leis de férias para comerciários e operários industriais; a
3 Angela de Castro Gomes, Burguesía e trabalho: política e legislagao social no Brasil (1917-1937) (Rio de Janeiro, 7 Letras, 2014), 251.
4 Gomes, Burguesia e trabalho..., 263.
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extensao de beneficios previdenciários, ligados a pensoes e aposentadorias, para várias categorias profissionais; e a criagao de mecanismos de conciliagao e julgamento de questoes relativas as relagoes de trabalho.5
A maior parte dos direitos do trabalho que vinham sendo elaborados foram consagrados pela Constituigao Federal de 1934. A magna carta defendia, por exemplo, a pluralidade e a autonomia sindicais e deliberava também sobre outras questoes ainda nao estabelecidas, como a indenizagao por dispensa sem justa causa e a criagao da Justiga do Trabalho. Além disso, com a constitucionalidade do governo, a Camara de Deputados voltou, temporariamente, a representar um foro importante de debates, formulagoes e decisoes em relagao a questao social. Daí a formagao de uma nova comissao de legislagao social encarregada de estudar e dar parecer sobre o tema. Todavia, com a escalada coercitiva do governo, evidente após a aprovagao pelo Congresso, em 1935, da Lei de Seguranga Nacional, que definia crimes contra a ordem política e social, as discussoes sobre as questoes trabalhistas se restringiram.6
Durante o Estado Novo (1937-1945), os debates e as iniciativas em torno da construgao da legislagao social continuaram como temática de interesse do governo Vargas, agora em sua versao ditatorial e amparada pelo discurso e pela prática política trabalhista, os quais orientariam as relagoes entre o Estado e a classe trabalhadora no Brasil.7 Sendo assim, no início dos anos 1940, uma nova comissao foi constituída, só que agora com o objetivo de unir e sistematizar toda a legislagao trabalhista, previdenciária, sindical e relativa a Justiga do Trabalho até entao produzida. O trabalho dessa comissao foi encerrado em 1943, quando foi promulgada a Consolidagao das Leis do Trabalho (CLT), pelo Decreto n. 5.452, de 1° de maio. Este apresentava diretrizes para as principais dimensoes dos direitos relativos ao mundo do trabalho em ámbito nacional (como questoes relativas as jornadas de trabalho; salários e remuneragoes; disciplina, admissoes e demissoes; carteira profissional; saúde e seguranga no trabalho; pensoes; trabalho feminino, de menores e estrangeiros etc.) e que haviam sido até o momento estabelecidos em lei.
No entanto, considerando os princípios que orientaram a construgao da legislagao social e a própria constituigao do Estado varguista — cuja estratégia de incorporagao da classe trabalhadora foi marcada, por um lado, pela abertura para interesses substantivos dos trabalhadores, e, por outro, por uma ampliagao do seu domínio sobre o mundo do trabalho —,8 pode-se dizer que a CLT surgiu marcada por ambiguidades. Uma delas diz respeito ao fato de que as leis trabalhistas, como afirma Kazumi Munakata, embora garantissem certos direitos sociais, os quais carregavam as marcas das lutas operárias nas décadas anteriores, "no seu espirito e no processo de seu implemento" também implicavam uma derrota dos trabalhadores.9 Isso se explica, entre outros fatores, pois sob o regime da CLT se estabeleceram inúmeros mecanismos de controle da classe trabalhadora, visto que representantes da burguesia urbana estiveram diretamente envolvidos na formulagao da legislagao social, que já era, entao, vista como um instrumento de defesa e de promogao de seus interesses. Além do fato de que, de acordo com o John French, quando da sua implementagao, a CLT era "tao imaginária quanto real" para os trabalhadores, os quais, sem ilusoes em relagao a lei e seus criadores e executores, procuraram utilizá-la de modo a fazer avangar os seus interesses.10
5 Gomes, Burguesia e trabalho..., 266.
6 Gomes, Burguesia e trabalho..., 346.
7 Sobre o assunto ver o clássico estudo de: Angela de Castro Gomes, A invengo do trabalhismo, (Rio de Janeiro, FGV, 2005).
8 Sobre esse entendimento ver: Angela Maria C. Araújo, "Estado e trabalhadores: a montagem da estrutura sindical corporativista no Brasil", em Do corporativismo ao neoliberalismo: estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra, org. por Angela Araújo (Sao Paulo, Boitempo, 2002), 29-57.
9 Kazumi Munakata, A legislagao trabalhista no Brasil (Sao Paulo, Brasiliense, 1981), 105.
10 John D. French, Afogados em leis: a CLT e a cultura política dos trabalhadores brasileiros (Sao Paulo, Fundagao Perseu Abramo, 2001), 10.
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A partir desse entendimento, pode-se afirmar, de outra parte, que uma das maiores contradiçoes presentes na CLT diz respeito ao fato de que ela excluiu do ámbito dos direitos sociais uma grande parcela dos trabalhadores brasileiros. Afinal, os preceitos constantes nela nao se aplicavam aos trabalhadores rurais e às(aos) empregadas(os) domésticas(os) — portanto, algumas das maiores fraçoes da classe trabalhadora existente naquele contexto. A situaçao específica de desamparo das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) remuneradas(os) no contexto de elaboraçao da CLT seguiu, na verdade, o parámetro que já vinha sendo adotado pelos legisladores sociais nos anos 1930 em relaçao aos individuos que executavam a prestaçao de serviços domésticos. Quando se recupera alguns dos estudos, debates e formulaçoes legais empreendidos pelos legisladores envolvidos na construçao da legislaçao social, bem como o próprio texto das leis aprovadas, nota-se que, quando nao ocorria a completa omissao, a referencia às pessoas empregadas no serviço doméstico tendia a ser realizada, em geral, seguindo o principio da exclusao ou da particularidade da situaçao daquelas(es) trabalhadoras(es).
Esse processo fica evidente logo quando da elaboraçao da lei de sindicalizaçâo. Segundo o texto do Decreto n.° 19.770, de março de 1931, funcionários públicos e empregados domésticos deveriam ser alvo de estatutos e regulamentos próprios. Aliás, de acordo com o parágrafo único do artigo 11, do referido decreto, o qual nao fazia distinçâo entre "empregados" e "operários" (manuais ou intelectuais), era afirmado que servidores públicos e trabalhadores domésticos nao poderiam ser classificados como parte da "classe dos empregados".11 Vale dizer que a exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) da lei de sindicalizaçâo, ocorria em um período em que a categoria iniciava seus primeiros esforços para a fundaçao de associaçoes profissionais, em prol da defesa dos seus interesses. Nesse sentido, pode-se considerar que a proibiçao da sindicalizaçâo foi um elemento que contribuiu para o aumento das dificuldades para construçao de formas de organizaçao coletiva entre as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os).12
No ano de 1932, dois outros importantes decretos-lei relativos ao trabalho excluíram as(os) empregadas(os) domésticas(os) de seus debates e determinaçoes. Um deles, que criou a lei que regulamentou o trabalho das mulheres, o decreto n.° 21.417-A, de 17 de maio de 1932,13 "considerada a mais importante medida sobre o trabalho feminino no período", voltou-se unicamente para a normatizaçao das condiçoes do trabalho das mulheres nos estabelecimentos industriais e comerciais.14 Embora a prestaçao de serviços domésticos fosse um dos principais espaços de inserçao das mulheres trabalhadoras urbanas no mercado de trabalho, visto que desde o final século XIX a força de trabalho feminina constituía a maioria no setor — na Capital Federal as mulheres representavam cerca 80% da força de trabalho —,15 as trabalhadoras domésticas remuneradas permaneciam invisíveis para os legisladores sociais.
Ressalte-se que a lei que regulamentou o trabalho feminino foi uma das que envolveu mais controvérsias no contexto de construçao da legislaçao de cunho social. Isso porque, se, por um lado, o decreto buscava alinhar as regulaçoes do trabalho às diretrizes internacionais, estabelecidas pela
11 "Decreto n.° 19.770, de 19 de margo de 1931", Diário Oficial da Uniao, 29 de margo de 1931, 4.801.
12 Ao longo da década de 1930 surgiram no país algumas iniciativas para a organizagao dos trabalhadores domésticos, a exemplo do trabalho realizado pioneiramente por Laudelina de Campos Melo, em Campinas (SP). Sobre a história da organizagao das(os) empregados domésticos no país ver: Joaze Bernardino-Costa, "Decolonialidade e interseccionalidade emancipadora: a organizagao política das trabalhadoras domésticas no Brasil", Sociedade e Estado 30, n. 1 (2015).
13 "Decreto n.° 21.417-A, de 17 de maio de 1932", Colero de Leis do Brasil, 1932, 260.
14 Giselle Martins Venancio, "Lugar de mulher é... na fábrica: Estado e trabalho feminino no Brasil (1910-1934)", História: Questoes & Debates, n. 34 (2001): 194.
15 A partir do final do século XIX ocorreu um fenómeno de feminilizagao do servigo doméstico na cidade do Rio de Janeiro fazendo com que o setor passasse a ser amplamente ocupado por mulheres. Sobre o assunto ver: Flavia Fernandes de Souza, Criados, escravos e empregados: o servido doméstico e seus trabalhadores na cidade do Rio de Janeiro (1850-1920) (Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2019), 85-87.
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Organizagao Internacional do Trabalho (OIT), bem como atender demandas históricas do movimento operário (como a proibigao do trabalho noturno das mulheres); por outro lado, ele foi alvo de críticas e ressalvas por parte da Federagao Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), que tinha como uma de suas principais representantes Berta Lutz. Segundo Teresa Cristina Marques, entre as críticas das feministas da FBPF sobre a lei estavam os maiores interditos a presenga de mulheres em certas profissoes do que o previsto em documentos internacionais e o nao estabelecimento do "compromisso de o empregador oferecer creches e, acima de tudo, por adotar o afastamento pós-parto sem oferecer a garantia da permanencia no emprego".16 Além disso, como ressalta Maria Valéria Junho Pena, a intervengao do Estado varguista em relagao ao trabalho feminino se fez com base na defesa da família, um "tipo específico de família", dependente do salário masculino e do trabalho doméstico nao pago feminino.17
A segunda importante lei decretada em 1932 e que, igualmente, excluiu as(os) empregadas(os) domésticas(os) foi a que instituiu, em território nacional, a obrigatoriedade do registro e uso da carteira profissional para os trabalhadores maiores de 16 anos de idade, homens e mulheres, empregados no comércio ou na indústria.18 Embora na exposigao dos motivos para a criagao dessa norma, ainda em 1931, o entao ministro do trabalho, Lindolfo Color, afirmasse que, provavelmente, com o tempo, a utilizagao da carteira se generalizasse em outras esferas de ocupagao,19 a realidade é que as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) nao tiveram permissao para obter tal documento e tampouco puderam partilhar das vantagens da adogao da carteira. Entre os pontos positivos da instituigao do documento estaria a garantia e a facilitagao aos seus portadores para o acesso aos direitos que estavam sendo estabelecidos, como o gozo de férias, os benefícios de aposentadorias e pensoes, a associagao a sindicatos, a realizagao de reclamagoes junto a Juntas de Conciliagao, etc.20
Nao obstante, a nao inclusao das(os) trabalhadoras(es) do servigo doméstico nas determinagoes dos decretos de criagao e de regulamentagao da carteira profissional certamente possuía relagoes com toda uma trajetória histórica de entendimento, por parte da classe dominante e de seus representantes, sobre o tipo de registro profissional a qual deveriam estar sujeitos os indivíduos que realizavam o trabalho doméstico remunerado. Desde o final do século XIX, acreditava-se que a única carteira apropriada as(aos) criadas(os)/empregadas(os) domésticas(os) seria a de identificagao elaborada por órgaos municipais e instituigoes policiais, a qual permitiria um maior controle social daquele grupo profissional.
Sobre esse ponto, é importante retomar a história anterior acerca da regulamentagao do servigo doméstico no final do Império e no início da Primeira República brasileira. No contexto abolicionista e de imediato pós-aboligao da escravidao, especialmente entre as décadas de 1880 e 1890, o servigo doméstico se tornou alvo de inúmeras propostas de regulamentagao por parte de representantes municipais (vereadores, intendentes e prefeitos), bem como de autoridades policiais e negociantes ligados ao agenciamento de trabalhadores em algumas cidades brasileiras, especialmente na cidade-capital do Rio de Janeiro.21 Tratavam-se de projetos de regulamentos que buscavam atender a demanda
16 Teresa Cristina de Novaes Marques, "Anatomia de uma injusti^a secular: o Estado Novo e a regula^ao do servido doméstico no Brasil", Varia Historia 36, n. 70 (2020): 189-190.
17 Maria Valéria Junho Pena, Mulheres e trabalhadoras: presenta feminina na constituifao do sistema fabril (Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981), 154-155.
18 "Decreto n.° 21.175, de 21 de mar^o de 1932", Diário Oficial da Uniao, 23 de margo de 1932, 5.338.
19 Jornal do Commercio, 26 e 27 de dezembro de 1931, 8.
20 Munakata, A legislafao trabalhista no Brasil, 90.
21 Vários projetos, posturas e/ou leis relativas a regulamentagao das atividades dos criados domésticos foram propostos, discutidos e implantados em algumas das principais cidades brasileiras naquele contexto, como foi o caso de Sao Paulo, Salvador, Recife, Rio Grande e Desterro. Sobre o assunto ver: Margaret Marchiori Bakos, "Regulamentos sobre o servido dos criados: um estudo sobre o relacionamento Estado e Sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889)", Revista Brasileira de
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de setores patronais, intelectuais e dirigentes que, por meio de denúncias, reclamagoes, críticas, análises e produgoes literárias (romances, contos e crónicas), veiculadas na imprensa, defendiam que o servigo doméstico se constituía, entao, em um problema social, o qual precisava ser solucionado pelos poderes públicos.22
Denominado pelos contemporáneos formadores da opiniao pública como a "crise dos criados", tal processo envolveu a formulagao de uma série de imagens, representagoes e discursos acerca de uma suposta desorganizagao e desmoralizagao no servigo doméstico; sendo suas(seus) trabalhadoras(es) consideradas(os) as(os) principais responsáveis pelas dificuldades pelas quais estariam passando as donas de casa e os chefes de família. Isso porque os criados e as criadas disponíveis no mercado de trabalho nao seriam mais obedientes, humildes e fiéis; tendiam a permanecer por pouco tempo nos domicílios, trocando com frequencia de empregos; além de fazerem muitas exigencias em relagao ao pagamento e as condigoes de trabalho. Os argumentos mais utilizados para caracterizar tal cenário envolviam a ideia de que haveria uma escassez de bons criados. Acreditava-se que o servigo doméstico era realizado por pessoas nao qualificadas, incompetentes, indisciplinadas, pouco afeitas ao trabalho e que somente buscavam obter regalias dos patroes; além de serem, em muitos casos, indivíduos inaptos moralmente.23
Sobre esse último aspecto foram formulados, entre o final do século XIX e o início do século XX, uma série de discursos moralistas, os quais atribuíam as(aos) trabalhadoras(es) qualitativos depreciativos. Era afirmado, por exemplo, que os(as) servigais domésticos(as) seriam, em sua maioria, bebados, doentes, desonestos, lascivos, preguigosos, ignorantes, fofoqueiros, desobedientes, mentirosos e insolentes. Por vezes, quando levado ao extremo, esses discursos defendiam que o servigo doméstico era composto por indivíduos que apenas queriam tirar vantagens e dar prejuízos as familias. Daí a associagao correntemente estabelecida a época entre os criados e os criminosos. Nao faltavam, nesse caso, referencias a roubos e furtos promovidos pela criadagem, bem como notícias que caracterizavam os patroes e as patroas como vítimas de uma turba de pessoas degeneradas e de má índole que atuavam de forma crescente na cidade.24
Em geral, tais problemas foram analisados, por intelectuais e por representantes dos poderes públicos, como sendo decorrentes do fim da escravidao e da emergencia da modernidade brasileira. Fosse porque o fim do sistema escravista teria langado na vadiagem muitos libertos, que se tornavam, segundo a visao de alguns, propensos ao crime; fosse porque com a emancipagao dos escravos aumentou os fluxos imigratórios, que traziam para a cidade do Rio de Janeiro um grande número de estrangeiros indesejáveis; fosse por causa da permanencia de valores e práticas de cunho escravistas nas relagoes de trabalho doméstico e da ausencia de uma educagao profissional.25
Foi nesse cenário de crescimento de insatisfagoes e desconfiangas patronais, muitas delas disseminadas e reforgadas por produgoes artísticas, intelectuais e jornalísticas, em relagao as(aos) trabalhadoras(es) domésticas(os), que projetos foram elaborados e iniciativas foram tomadas. Isso foi realizado tendo em vista uma suposta e urgente necessidade de regulamentagao do servigo doméstico, o que fez com que o assunto ganhasse as pautas de discussoes e de agoes de representantes municipais e autoridades policiais a partir das últimas décadas do século XIX. E as propostas de regulamentos entao
Historia 4, n. 7 (1984): 94-104; Henrique Espada Lima, "Trabalho e lei para os libertos na Ilha de Santa Catarina no século XIX: arranjos e contratos entre a autonomia e a domesticidade", Cadernos AEL 14, n. 26 (2009): 135-177; Lorena Féres da Silva Telles, Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em Sao Paulo (1880-1920) (Sao Paulo, Alameda, 2013); Maciel Henrique Carneiro da Silva, Nem mae preta, nem negra julo: historias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador (18701910) (Jundiaí, Paco Editorial, 2016).
22 Souza, Criados, escravos e empregados..., 226-230.
23 Souza, Criados, escravos e empregados..., 184-198.
24 Souza, Criados, escravos e empregados..., 198-206.
25 Souza, Criados, escravos e empregados..., 206-217.
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formuladas apresentavam algumas características básicas, que, em geral, visavam a atender as demandas de patroes e patroas a respeito das relagoes de trabalho no servigo doméstico.
No entanto, pode-se dizer que o principal objetivo dos projetos de regulamentagao do servigo doméstico era a criagao de mecanismos de controle social, por meio da identificagao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os). Todas as propostas que foram formuladas ou que passaram pela apreciagao dos representantes municipais apresentavam um teor profundamente coercitivo, orientado pela intengao de fiscalizar os trabalhadores domésticos que atuavam na cidade. Ou seja, todos os vereadores, intendentes, chefes de polícia e demais cidadaos que propuseram normas e estratégias para uma nova organizagao e funcionamento do servigo doméstico na capital concordavam que era necessário submeter a criadagem a uma rigorosa vigilancia por parte dos poderes públicos.
Em quase todos os projetos de regulamento havia determinagoes para a criagao de uma matrícula ou registro geral das(os) trabalhadoras(es) que prestavam servigos domésticos. Tal inscrigao seria realizada em um órgao definido para tal fim (como a secretaria de polícia ou uma repartigao municipal) e serviria de base para a obrigatoriedade do uso, por parte das criadas e dos criados domésticos, de uma caderneta de identificagao e de registro da trajetória profissional. Esse documento seria utilizado por representantes municipais, autoridades policiais e judiciais, bem como patroes e agenciadores, para o conhecimento e o monitoramento das(os) trabalhadoras(es). Na realidade, ficava evidente que os princípios que orientaram a formulagao das normas era o da "suspeigao generalizada"26 e o da estigmatizagao social das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os).27
Foi, portanto, em torno desse princípio, de controle do poder público sobre as(os) trabalhadoras(es), que se estruturaram as tentativas de regulamentagao do servigo doméstico elaboradas por ou encaminhadas aos representantes municipais da capital do Brasil a partir das últimas décadas do século XIX. E o resultado inicial desse processo foi a promulgagao de uma matrícula geral do servigo doméstico em 1896, constituindo-se, de fato, na primeira medida oficial em relagao ao assunto na cidade do Rio de Janeiro.28
Todavia, dada as dificuldades de implementagao das medidas, assim como as resistencias por parte de setores patronais e de trabalhadores, as iniciativas para a regulamentagao do servigo doméstico no entao Distrito Federal continuaram a ocorrer nas primeiras décadas do século XX. Nesse momento, as autoridades policiais estavam mais atuantes no que diz respeito ao assunto, criando matrículas facultativas para os indivíduos que prestavam o servigo doméstico. Esse foi o caso de uma determinagao que fora oficializada pelo Decreto n° 6.440, de 30 de margo de 1907, que dava novo regulamento ao servigo policial e criava o Gabinete de Identificagao e Estatística, órgao que ficaria diretamente responsável pela realizagao da matrícula e do atestado de bons antecedentes das criadas e dos criados domésticos.29
Com o tempo, essa tentativa de regulamentagao policial do servigo doméstico fracassou em decorrencia de resistencias colocadas por parte dos patroes, que nao colaboraram com as autoridades públicas e, especialmente, das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os), que, com o apoio de grupos mais organizados da classe trabalhadora carioca, nao compareceram para a realizagao da matrícula.30 Porém, no decurso dos anos 1910, os representantes dos poderes municipais da capital voltaram a discutir o assunto e no início da década de 1920 a questao da regulamentagao do servigo doméstico na cidade do
26 Sobre a nogao de "suspeigao generalizada" ver Sidney Chalhoub, Cidade febril: cortifos e epidemias na Corte Imperial (Sao Paulo, Companhia das Letras, 2004), 20-29.
27 A respeito do processo de estigmatizagao social sofrido pelos trabalhadores domésticos entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX ver: Souza, Criados, escravos e empregados, 155-217.
28 Boletim da Intendencia Municipal da Capital Federal,, abril a setembro de 1896, 3.
29 "Decreto n° 6.440, de 30 de margo de 1907", Diário Oficial da Uniao, 31 de margo de 1907, 2167.
30 Para um estudo mais aprofundado do assunto ver: Souza, Criados, escravos e empregados..., 262-268.
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Rio de Janeiro passou para a algada do Poder Federal. Em 30 de julho de 1923, foi assinado pelo entao presidente da República, Arthur Bernardes, o Decreto de n.° 16.107, que regularizava a locagao dos servigos domésticos no Distrito Federal.31A principal determinagao do decreto de 1923 era a obrigatoriedade da identificagao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) no Gabinete de Identificagao e Estatística, para o uso de uma carteira (com fotografía e impressao datiloscópica e informagoes relativas aos contratos de trabalho e entradas e saídas nos empregos). E foi com base nesse decreto que o integrante da Comissao Especial de Legislagao Social, Alberto Surek, redigiu o projeto de regulamentagao federal proposto em 1935, como citado na introdugao deste artigo.
De volta a década de 1930, observa-se que em meio a reivindicagoes, debates e promulgagoes de decretos sobre as novas leis sociais, foram realizados vários esforgos na capital com o objetivo de reforgar o papel das autoridades policiais no processo de regulamentagao do servigo doméstico. Um exemplo disso ocorreu quando da reforma da polícia no Distrito Federal, em 1931, no momento em que foi criada uma inspetoria de vigilancia funcional que tinha como uma de suas atribuigoes a "superintendencia dos servidos domésticos". Tal departamento seria dedicado a identificagao e a vigilancia do setor, bem como das demais questoes relativas as relagoes de trabalho no ambito dos domicílios urbanos na cidade do Rio de Janeiro.32
Nos anos seguintes, foram tomadas outras iniciativas policiais para regulamentar o servigo doméstico na capital. Em novembro de 1936, uma portaria assinada pelo Chefe da Polícia do Distrito Federal estabeleceu o "servigo de identificagao dos domésticos", previsto para ser iniciado em janeiro de 1937. Tratava-se de uma identificagao voluntaria que deveria ser realizada pelas(os) trabalhadoras(es) por meio de verificagao de "nada consta" e de registro de ficha com dados pessoais, fotografia e impressao digital, para o fornecimento de um "bilhete de identificagao", o qual seria revalidado a cada mudanga de emprego.33 A criagao desse servigo foi amplamente divulgada e valorizada na imprensa carioca, que destacava a importancia dessa medida, considerando as notícias e as estatísticas existentes sobre a suposta frequencia de furtos e crimes cometidos ou facilitados por empregadas(os) domésticas(os) nos lares da capital.34
Tendo em vista a falta de sucesso da portaria de 1936,35 dadas as dificuldades para sua execugao e fiscalizagao, no início dos anos 1940, a polícia do Distrito Federal permaneceu interessada no controle do servigo doméstico e empenhada no esforgo de identificagao das(os) trabalhadoras(es) atuantes nos domicílios da cidade do Rio de Janeiro. Sendo assim, no final do ano de 1943, foi noticiado nos jornais da capital que uma nova portaria da polícia havia sido baixada, estabelecendo mudangas que resultaram no surgimento de uma segao de registro e de fiscalizagao das(os) empregadas(os) domésticas(os). O órgao seria responsável pelos servigos de identificagao, verificagao da vida pregressa das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) (para o fornecimento de bilhetes e atestados de bons antecedentes), vistos de mudanga de residencia ou emprego, recebimento de reclamagoes de patroes e abertura de sindicancias.36
Portanto, durante as décadas de 1930 e 1940, a carteira a que tinha acesso as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) remuneradas(os) que atuavam na capital seriam as cadernetas ou os bilhetes de identificagao propostos pelas autoridades policiais — cujas origens encontravam-se no
31 "Decreto n.° 16.107, de 30 de julho de 1923", Diario Oficial da Uniao, 2 de agosto de 1923, 21901.
32 Jornal do Commercio, 15 de agosto de 1931, 4.
33 Jornal do Commercio, 20 de dezembro de 1936, 11.
34 Correio da Manha, 19 de dezembro de 1936, 12.
35 Em notícia sobre a nova iniciativa da polícia afirmava-se que "agora, o que se torna necessário é que as donas de casa cooperem com as autoridades, a fim de que prevalega o controle estabelecido", indicando que um dos fatores que geraram o fracasso das medidas policiais seria a falta de cooperagao dos empregadores. O Jornal,, 22 de janeiro de 1944, 5.
36 O Jornal,, 3 de dezembro de 1943, 5.
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contexto da aboligao da escravidao no final do século XIX — e nao a carteira profissional, instituída para o uso dos demais trabalhadores assalariados em 1932. Embora a instituigao da "carteira de trabalho" — como ficou conhecida a carteira profissional — tenha sido marcada por ambiguidades e por contradigoes próprias da instituigao da legislagao trabalhista no Brasil, enquanto símbolo de garantia de direitos do trabalhador e, igualmente, instrumento de dominagao de classe e de controle do mercado de trabalho, a exclusao das(os) empregadas(os) domésticas(os) do acesso a carteira profissional diz muito sobre o caráter limitado das leis que estavam sendo formuladas. Da mesma forma, que tal exclusao revela também a maneira pela qual aquelas(es) trabalhadoras(es) estavam sendo discriminadas(os) e estigmatizadas(os) em relagao ao conjunto dos trabalhadores assalariados brasileiros.
Em outras importantes leis trabalhistas, implementadas nos governos de Vargas, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) nao tiveram direitos garantidos, tal como ocorreu em relagao as questoes relativas aos acidentes de trabalho. Durante a formulagao do projeto referente a protegao dos acidentados, as(os) empregadas(os) domésticas(os) foram inicialmente incluídas(os) no ámbito da protegao legal prevista, tal como colocado pelo ministro Salgado Filho na exposigao dos motivos para a criagao da lei.37 Nao obstante, o decreto de n. 24.637, de 10 de julho de 1934, colocou "os domésticos e jardineiros que, em número inferior a cinco, residirem com o empregador" como uma das excegoes nas determinagoes entao impostas aos empregadores em relagao aos acidentes ocorridos no ambiente de trabalho.38
No caso do decreto-lei que instituiu o salário-mínimo, em 1938, nenhuma mengao foi realizada ao servigo doméstico, sendo considerado tao somente o trabalho em domicílio, que nos termos legais nao compreendia o trabalho realizado para atender as necessidades domésticas.39 Dessa forma, as(os) empregadas(os) domésticas(os) nao teriam direito a remuneragao básica estabelecida para os trabalhadores brasileiros assalariados. Na verdade, aqueles indivíduos que realizavam a prestagao de servigos domésticos nos domicílios foram até mesmo excluídos do censo realizado para o estudo das bases de determinagao do salário-mínimo.
Nos anos seguintes, a justificativa dada por aqueles que buscaram explicar tal exclusao envolvia, por um lado, o alinhamento do Brasil com critérios estabelecidos em conferencias internacionais do trabalho; e, por outro lado, o pressuposto dos legisladores brasileiros de que necessidades como as de alimentagao, habitagao, vestuário e transporte já seriam garantidas as(aos) trabalhadoras(es) domésticas(os) tendo em vista a própria natureza do trabalho daqueles que residiam com seus patroes(as).40 Vale dizer que o argumento de que nao seria possível estipular um salário mínimo para as(os) empregadas(os) domésticas(os), porque afetaria o orgamento das famílias, sobretudo as da classe média, causando desemprego,41 nao considerava a situagao daquelas(es) que nao dormiam ou viviam no domicílio do patrao.
Entretanto, diante desse cenário de discriminagoes e de exclusoes na legislagao que estava sendo construída, a categoria das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) foi objeto de preocupagao por parte de alguns parlamentares e membros de comissoes legislativas ou mesmo por alguns de seus representantes, que se manifestaram a respeito do assunto durante os anos 1930. Quando da Assembleia Nacional Constituinte, em 1934, por exemplo, em discussao sobre as determinagoes relativas ao direito de afastamento do trabalho no período de pós-parto pelas operárias, foi questionado por um grupo de deputados classistas, liderados por Joao Beraldo, as razoes pelas quais tal direito nao
37 Jornal do Commercio, 20 de julho de 1934, 5.
38 "Decreto n.° 24.637, de 10 de julho de 1934", Diário Oficial da Uniao, 12 de junho de 1934, 14001.
39 "Decreto n.° 399, de 30 de abril de 1938", Colefao de Leis do Brasil, 1938, 76.
40 Diário da Noite, 4 de maio de 1940, 14.
41A Noite, 16 de maio de 1939, 3.
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deveria ser estendido a todas as mulheres trabalhadoras, pois "a empregada doméstica, ou comercial e a trabalhadora rural sao tao necessitadas quanto a trabalhadora industrial".42
De acordo com Teresa Cristina Marques, Beraldo era próximo a Bertha Lutz43 e foi um dos mais importantes defensores de demandas feministas da FBPF quando da Constituinte. E embora as principais pautas da federagao girassem em torno do direito ao voto, o grupo apoiava as políticas públicas em benefício da maternidade. Sendo importante considerar que tais demandas eram também defendidas por líderes da bancada católica e todos aqueles que reconheciam a importancia de gerir "as relagoes de trabalho de categorias profissionais consideradas importantes para a sustentagao da atividade industrial".44 Por essa razao, o texto final da Constituigao Federal de 1934, em artigo sobre a protegao ao trabalho, definiu como preceito a assistencia médica e sanitária, bem como o descanso, antes e depois do parto, "ao trabalhador e a gestante" — o termo "gestante operária", inicialmente proposto, foi retirado após reivindicagoes feministas de modo que houvesse brechas para interpretagoes que pudessem abranger todas as mulheres trabalhadoras, incluindo as empregadas domésticas.45
Porém, mais do que essas referencias, durante o governo constitucional de Vargas (1934-1937), a Camara de Deputados debateu acerca da garantia de certos direitos para as(os) trabalhadoras(es) que se empregavam na prestagao de servigos domésticos. Isso ocorreu a partir de meados da década de 1930, quando novos projetos foram propostos em relagao as(aos) trabalhadoras(es) domésticas(os). Ao mesmo tempo em que as justificativas para a exclusao da legislagao trabalhista e para a permanencia de antigas formas de controle foram reformuladas.
Regulamentagao e exclusao: novos projetos e renovadas justificativas
Como já recuperou a historiadora Teresa Cristina Marques, o primeiro projeto de cunho trabalhista elaborado durante a Era Vargas em relagao ao trabalho doméstico remunerado foi apresentado em 20 de margo de 1935, pelo deputado classista Antonio Rodrigues de Souza, que fora eleito pela categoria dos estivadores do Rio de Janeiro.46 Souza formulou uma proposta para a criagao, em território nacional, do Instituto de Aposentadorias e Pensoes dos Locadores do Servigo Doméstico. O projeto tinha por objetivo criar um órgao subordinado ao Ministério do Trabalho, destinado a conceder aos seus associados aposentadoria por invalidez ou velhice, pensao aos herdeiros e auxílio maternidade, bem como os servigos de assistencia médica, cirúrgica, hospitalar, dentária, creche e escola por meio de uma regulagao especial.47
42 Marques, "Anatomía de uma injustiça secular...", p. 192.
43 Quando parlamentar, entre 1936 e 1937, Lutz chegou a formular um projeto, juntamente com Maria Luiza Bittencourt, de reformulaçao do estatuto político das mulheres no Brasil. Nesse amplo projeto proposto encontravam-se artigos que estendiam "a todas as mulheres que exercessem atividade remunerada o direito a férias anuais, à previdencia, e a limitaçao de horas de trabalho". O projeto determinava também a ilegalidade do emprego de menores de 14 anos como empregadas domésticas, "além de tipificar o crime de abuso físico contra a empregada doméstica, com agravante, caso se tratasse de menor sob a tutela do empregador". Porém, segundo Marques, "no decurso do debate sobre o que fazer com as mulheres que trabalhavam nos lares, as feministas da FBPF nao tiveram força, ou nao desejaram, opor-se a grupos poderosos e bem articulados que haviam encampado a questao do trabalho doméstico após o encerramento da Constituinte. O seu posicionamento político, além de omisso, revela a contradiçao do discurso em defesa da Mulher universal, conceito usual na retórica feminista da Federaçao". Marques, "Anatomia de uma injustiça secular...", 204; 210.
44 Marques, "Anatomia de uma injustiça secular...", 193-195.
45 "Constituiçao da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934", Diario Oficial da Uniao, 16 de julho de 1934.
46 Marques, "Anatomia de uma injustiça secular...", p. 196. Vale ressaltar que o estudo realizado por Marques foi o primeiro publicado sobre as relaçoes entre o Estado e o trabalho doméstico remunerado durante os governos de Getúlio Vargas — assunto até entao desconhecido na historiografia brasileira.
47 Diario do Poder Legislativo, 22 de março de 1935, 1967.
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De acordo com o projeto de Rodrigues de Souza, seriam sócios do instituto "todos os locadores de servigos domésticos, no limite de 18 a 55 anos de idade, sem distingao de sexo ou nacionalidade, qualquer que seja a forma de remuneragao em casas particulares ou nao". Para terem as garantias oferecidas pelo instituto, os empregadores ficariam obrigados a descontar 5% da remuneragao de cada locador de servigos domésticos e pagar mensalmente aos cobradores do órgao, sendo que o Estado pagaria mais 5% da contribuigao, totalizando uma taxa de 10%. E as aposentadorias e pensoes seriam concedidas a partir do valor de 100$000 (cem mil réis), sofrendo alteragoes anuais em suas quotas de acordo com uma tabela anexada a proposta.48
Em seus cinco capítulos, o projeto de criagao do Instituto de Aposentadorias e Pensoes dos Locadores do Servigo Doméstico apresentava uma série de determinagoes que, em geral, buscavam beneficiar as(os) empregadas(os) domésticas(os) com certas garantias sociais. Isso porque Antonio Rodrigues de Souza objetivava também dar uma resposta a demandas realizadas pela Uniao Doméstica, uma associagao beneficente que atuava em favor das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) na capital do Brasil.49 Em 20 de fevereiro de 1935, o deputado recebeu um ofício assinado por Joaquim Rufino dos Santos, em nome da diretoria daquela organizagao e de acordo com o resolvido em assembleia geral, apelando para que ele apresentasse medidas que viessem a beneficiar essa "humilde e desprotegida classe". E dizia assim o ofício:
Exmo. Senhor. O Governo Provisório em todos os seus decretos relativos ao proletariado, só se lembrou desta pobre classe (a menos favorecida pela fortuna) para excluí-la (...).
Mais de uma vez esta Diretoria se dirigiu ao Ministério do Trabalho, em longos memoriais, solicitando uma legislagao que amparasse a classe, sugerindo-lhe medidas que nenhuma despesa traria ao Estado. Trata-se de uma classe de cerca de 60 mil almas, só no Distrito Federal. (...)
Nao é possível que em uma ocasiao em que, muito justamente, todas as classes trabalhadoras vem sendo amparadas pelo Estado, por meio de leis beneficiárias, inclusive os empregados no comércio (decreto n. 24.273, de maio de 1934), se deixe a continuar no mais completo abandono uma classe que, sendo a menos favorecida pela fortuna, por isso mesmo, nao pode por si só e sem o auxilio oficial, preparar o pao com o qual se deve manter na velhice, para evitar a humilhagao de esmolar. O regulamento que baixou com o decreto n. 16.107, de 30 de julho de 1923 (art. 1°), fez a obrigatoriedade da identificagao para os locadores do servigo doméstico, criou-lhes várias outras obrigagoes, entretanto, nao lhe garantiu como cumpria ao governo, uma velhice ou invalidez menos angustiosa. (...)50
Ainda segundo a Uniao Doméstica, a situagao de desamparo legal que se encontravam as(os) empregadas(os) domésticas(os) era agravada porque pequenas garantias presentes em decretos
48 Diário do Poder Legislativo, 22 de margo de 1935, 1967-8.
49 Ainda pouco se sabe sobre essa organizagao. As informagoes disponíveis sao resultantes de algumas referencias feitas a ela na grande imprensa carioca. Até o momento o que foi descoberto é que a Uniao Doméstica foi fundada no Rio de Janeiro no início dos anos 1920, sendo em algumas notícias afirmado que se tratava de uma sociedade de resistencia (O Paiz, 14 e 15 de fevereiro de 1923, 8) e em outras uma sociedade beneficente (O Paiz, 17 de fevereiro de 1923, 6). Em 1923, a diregao de tal associagao se apresentava como sendo formada por Joaquim Rufino dos Santos (presidente); José Hora dos Santos (tesoureiro); Alvaro da Silva Muniz (secretario interino).
50 Diário do Poder Legislativo, 22 de margo de 1935,1969, grifos do autor.
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anteriores, como os de 1923, viraram "letra morta". Esse era o caso da determinagao para que o(a) trabalhador(a) recebesse um aviso prévio por parte dos patroes quando da demissao. Segundo Joaquim Rufino dos Santos, havia "patroes que mesmo a noite despendem seus empregados, inclusive senhoras e mesmo mogas solteiras, que moram nas casas dos empregadores e, muitas vezes, nao tendo família nesta capital, passam a pernoitar de favor em casa amiga, e muitas vezes, nos distritos policiais, com graves danos morais".51
Como é possível observar, o projeto proposto por Antonio Rodrigues de Souza buscava atender a demandas colocadas por representantes das(os) empregadas(os) domésticas(os) em relagao as dificuldades enfrentadas pela categoria e que iam na contramao dos discursos dominantes em relagao as justificativas para a exclusao daquelas(es) trabalhadoras(es) do conjunto de leis trabalhistas. E provavelmente por esse motivo, o projeto de criagao do Instituto de Aposentadorias e Pensoes nao foi alvo de maiores atengoes na Camara. Contudo, na imprensa, o projeto ganhou certa repercussao. Em um artigo publicado no Correio da Manha, em 07 de abril de 1935, sob o título "O problema das domésticas", a escritora e jornalista Rachel Padro, afirmando que esse era um problema que só poderia ser esclarecido por uma mulher, lamentava que "um senhor deputado em falta de assunto mais interessante" apresentasse para debates na Camara de Deputados um projeto de lei de aposentadoria e pensoes sem que existisse um regulamento que pudesse evitar os patroes de ter empregadas domésticas portadoras de doengas e má conduta.52
Em sua argumentagao Rachel Prado, que militava na causa feminista, recuperava conhecidos e antigos argumentos patronais sobre os problemas do servigo doméstico, como a questao da escassez de empregadas e das "falhas de competencias" daquelas(es) disponíveis no mercado de trabalho, "principalmente as nacionais, que oferecem constantemente um perigo aos patroes nao só do ponto de vista da higiene, como também pela desonestidade".53 A escritora também criticava o estabelecimento de um valor mínimo de remuneragao para as empregadas domésticas, alertando para o desemprego caso o mesmo fosse estabelecido, uma vez que isso sacrificaria alguns empregadores, como aqueles pertencentes a modestas famílias ou ao setor profissional dos funcionários públicos.
Assim, Prado defendia a obrigatoriedade das cadernetas de identificagao, de modo que as patroas nao precisassem descobrir por meio de tragos fisionomicos ou pela vestimenta se a nova empregada seria de confianga. Como muitos de seu tempo e de décadas anteriores, Rachel Prado acreditava que por meio de tal medida — eivada de preconceitos — "diminuiriam os roubos, os assaltos, e as patroas estariam tranquilas quanto a suas joias, roupas, dinheiro etc.". Além de ser indispensável um exame de saúde, sobretudo para as cozinheiras e amas secas, "pois a falta de moral de uma empregada influi na educagao das crianzas, nos complexos sexuais, na religiao, etc.".54
Provavelmente por sua credibilidade como escritora e jornalista defensora dos direitos das mulheres — ainda que seu olhar fosse marcado pela sua perspectiva de mulher pertencente a classe patronal —, o artigo de autoria de Rachel Prado impactou os debates sobre o trabalho doméstico remunerado na Camara de Deputados, sendo utilizado como um dos elementos para a justificativa elaborada quando da apresentagao de outro projeto voltado para a locagao de servigos domésticos na Camara de Deputados em 1935. Esse segundo projeto que foi exposto em 18 de abril por alguns deputados representantes da classe trabalhadora, entre os quais estava Antonio Rodrigues de Souza — que se defendeu da crítica de Prado afirmando que o projeto visando as aposentadorias e pensoes das(os) empregadas(os) domésticas(os) nao era "obra ociosa e nem inoportuna".55
51 Diario do Poder Legislativo, 22 de margo de 1935, 1969.
52 Correio da Manha, 7 de abril de 1935, 4.
53 Correio da Manha, 7 de abril de 1935, 4.
54 Correio da Manha,, 7 de abril de 1935, 4.
55 Diario do Poder Legislativo, 18 de abril de 1935, 2743.
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O objetivo principal do projeto de n.° 238 era passar para a observagao do Ministério do Trabalho o decreto de 1923 — que antes era de responsabilidade única do Ministério da Justiga —, bem como efetivar suas determinagoes — até entao nao cumpridas — e estender suas normas para todo o território nacional. Isso tendo em vista que apesar da criagao das carteiras profissionais para os trabalhadores assalariados pelo decreto de 1932, o servigo doméstico, "por sua natureza", "obriga que os empregados tenham franco ingresso nos aposentos das famílias, forgando mesmo que lhes seja dispensada toda confianga", tornando indispensável a busca por bons antecedentes nas polícias locais. Sendo assim, o projeto previa o servigo pago de identificagao e de fornecimento de atestados de vacina e de saúde para os empregados domésticos e orientava para que associagoes beneficentes e sindicatos de classe contribuíssem nos processos de fornecimento gratuito de cadernetas, além de manterem escolas e creches para os filiados que precisassem desse tipo de servigo.56
Ainda em abril de 1935, esse projeto, que, em geral, era uma versao renovada do decreto de 1923, foi encaminhado para estudos da Comissao de Legislagao Social, sendo alvo de debates no decorrer do mesmo ano. Uma das grandes dúvidas que pairava sob os deputados era se a regulamentagao da prestagao de servigos domésticos deveria ou nao abranger direitos que estavam sendo garantidos, por meio da legislagao trabalhista, aos demais trabalhadores urbanos e assalariados brasileiros, como as horas de trabalho, as férias anuais e o descanso semanal. E as razoes para a defesa ou rejeigao desses pontos na regulamentagao do servigo doméstico tinham relagoes com princípios acerca de quem seriam as(os) empregadas(os) domésticas(os) e o tipo de trabalho que realizavam.
Em 12 de setembro de 1935, a Comissao de Legislagao Social da Cámara dos Deputados apresentou um substitutivo ao projeto de n. 238, que visava á regulagao, em ámbito nacional, da locagao de servigos domésticos. E a primeira mudanga compreendia a definigao de quem seriam os indivíduos empregados no servigo doméstico, pois segundo o substitutivo, eram considerados "todos quantos empreguem sua atividade em residencias particulares e a benefício das mesmas, de modo permanente e exclusivo, mediante remuneragao". Dessa forma, somente seriam considerados trabalhadores(as) domésticos(as) aqueles(as) que prestavam servigos em domicílios, diferentemente da definigao presente no decreto de n.° 16.107, de julho de 1923, pois neste eram considerados locadores de servigos domésticos todos aqueles que prestavam servigos de natureza doméstica em residencias particulares, quanto em "hotéis, restaurantes, casas de pasto, pensoes, bares, escritórios ou consultórios".57
Portanto, na nova versao do projeto surgia uma definigao do trabalho doméstico remunerado limitado á esfera privada e ao ámbito das famílias, visto que se as mesmas atividades fossem realizadas na esfera pública, em espagos ligados ao comércio ou á prestagao de servigos, nao seriam consideradas atividades domésticas, como o foi até o início do século XX. E para além da mudanga na definigao do trabalho doméstico remunerado, o substitutivo de 1935 propunha a obrigatoriedade das(os) empregadas(os) domésticas(os) de utilizarem a carteira profissional instituída pelo decreto de 1932. Nao obstante, diferentemente dos demais trabalhadores assalariados, para a obtengao da "carteira profissional dos domésticos" seriam exigidas as seguintes formalidades: prova de identidade; atestado de boa ou de bons antecedentes passados por autoridades policiais; e declaragoes de vacina e saúde
56 Diario do Poder Legislativo, 18 de abril de 1935, 2.742-5.
57 De acordo com o artigo segundo do regulamento, os locadores de servidos domésticos compreendiam: "os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engomadeiras, jardineiros, hortelöes, porteiros ou serventes, enceradores, amas secas ou de leite, costureiras, damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam, a soldada, em quaisquer outros servidos de natureza idéntica, em hotéis, restaurantes ou casas de pasto, pensöes, bares, escritorios ou consultorios e casas particulares". "Decreto n.°. 16.107, de 30 de julho de 1923", Diario Oficial da Uniao, 2 de agosto de 1923, 21901.
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passadas por agente sanitários municipais ou estaduais e que deveriam ser renovados a cada mudanga de emprego.58
O substitutivo previa ainda regras para os contratos de prestagao de servigos domésticos, como o aviso prévio de oito dias para a rescisao após seis meses, envolvendo o pagamento ou a perda de salário por parte de empregadores e de empregados; a indenizagao de um ordenado pela demissao da(o) empregada(o) após dois anos de servigos prestados; o estabelecimento de direitos e deveres entre as partes envolvidas em tal relagao de trabalho;59 e multas para as infragoes. Da mesma forma, o substitutivo apresentava orientagoes para como deveriam agir as associagoes de classe (que seriam obrigadas a manter escolas profissionais e creches para os filhos das empregadas domésticas) e as autoridades policiais e representantes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.60
Para além dessas determinagoes, o que o projeto da Comissao de Legislagao Social apresentava de mais inovador, em relagao a proposta original e em consonancia com a construgao da legislagao trabalhista em andamento no país, era um artigo sobre as férias das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os). Segundo a proposta, "o empregado doméstico teria direito, anualmente, a quinze dias de férias remuneradas, com o mesmo salário constante do contrato". Caberia ao empregador determinar quando concederia férias a(ao) empregada(o), sendo obrigado a realizar o registro na carteira profissional. E quando as férias nao fossem gozadas, as(os) trabalhadoras(es) teriam direito "ao pagamento a mais dos salários ajustados, correspondentes a quinze dias em cada ano de servigo".61
Como era de se esperar, a concessao de algumas garantias as(aos) empregadas(os) domésticas(os) e, especialmente, o direito de férias foram os principais pontos a serem considerados pelos deputados em relagao a regulamentagao. Inicialmente, a questao foi colocada em fungao de uma reivindicagao realizada por outro grupo que se dizia representante das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os). Em 20 de setembro de 1935, um memorial foi apresentado pela chamada Casa da Empregada Doméstica. Ao que tudo indica, outra sociedade beneficente e de assistencia nascida de um grupo de patroas e empregadas domésticas vinculadas a um círculo de formagao católica, no início dos anos 1930, em Copacabana, que oferecia cursos para mulheres que prestavam servigos nos domicílios do bairro.62
Em um documento assinado por Chiquita Dias Martins (presidente), Joaquina Monteiro de Leao (assistente da Associagao das Senhoras Brasileiras, que apoiava a instituigao) e Rubens Porto (consultor técnico), a Casa da Empregada Doméstica comentou e fez sugestoes ao substitutivo em discussao na Camara de Deputados. O ponto mais relevante indicado no memorial dizia respeito a concessao de férias remuneradas. Segundo as representantes da Casa da Empregada Doméstica, o artigo em questao permitia a burla do dispositivo, visto que o empregador poderia oferecer uma gratificagao a(ao) empregada(o) no caso da nao concessao de férias. Isso porque, segundo as autoras do memorial, "as férias nao tem por fim a gratificagao, mas uma finalidade superior social, qual seja,
58 Diario do Poder Legislativo, 12 de setembro de 1935, 4403.
59 Vale destacar que o dever dos empregadores era um só: "tratar com urbanidade o empregado respeitando-lhe a honra e a personalidade". Já os deveres dos empregados eram: "prestar obediencia ao empregador ou as pessoas da família; tratar com polidez as pessoas que se utilizarem transitoriamente de seus servigos; desobrigar-se de seus servigos com diligencia e boa vontade; zelar pelos interesses do empregador; responder pecuniariamente pelos danos causados por sua incúria ou culpa exclusiva". Diario do Poder Legislativo, 12 de setembro de 1935, 4404.
60 Diario do Poder Legislativo, 12 de setembro de 1935, 4403-4.
61 Diario do Poder Legislativo, 12 de setembro de 1935, 4404.
62 De acordo com Teresa Cristina Marques, "além de cursos de aperfeigoamento, a Casa oferecia alojamento provisório as trabalhadoras recém-chegadas a cidade, além de ambulatório médico e odontológico". Ainda segundo a autora, a Casa da Empregada Doméstica teria obtido autorizagao do Ministério do Trabalho para distribuir carteiras e encaminhar as trabalhadoras para postos de trabalho, o que sinaliza um projeto de assistencialismo apoiado pelo Estado. Marques, "Anatomia de uma injustiga secular...", 201-202.
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assistencia ao trabalhador, visando a sua saúde com descanso periódico". E acrescentavam: "nao há de ser pela troca do lucro pecuniário, quinze dias remunerados, que se dará assistencia a quem trabalha e como tal carece de descanso".63
Embora nao tenha sido registrado nenhum debate dos deputados em torno do assunto nas atas dos expedientes que se seguiram na cámara, ao que parece a reivindicagao da Casa das Empregadas Domésticas foi atendida, pois no dia 28 de outubro de 1935, foi publicada uma alteragao no substitutivo no que se referia ao artigo sobre as férias. Na nova versao do dispositivo, as(os) empregadas(os) domésticas(os) teriam direito aos quinze dias de férias remuneradas, depois de um ano de servigos prestados.64 Portanto, caía a determinagao que possibilitava que os empregadores nao concedessem as férias em troca de uma gratificagao. E com tal modificagao o projeto estava pronto para ser posto em discussao entre os deputados em momento oportuno. Isso, porém, nao ocorreu no ano de 1935, pois somente anos depois o assunto retornou a pauta de debates parlamentares.
Com o fechamento do Congresso Nacional, em fungao da instalagao do regime ditatorial do Estado Novo, em novembro de 1937, as atividades dos deputados federais foram interrompidas. Todavia, os trabalhos relativos á legislagao social continuaram a ser realizados por meio de uma comissao especial. Nesse processo, alguns projetos que haviam tramitado na Cámara nos anos anteriores voltaram a ser alvo de atengao por parte dos legisladores, como foi o caso do projeto relativo á locagao de servigos domésticos. Em dezembro de 1938, na ocasiao de retomada dos debates entre integrantes da Comissao Especial de Legislagao Social, o que primeiramente foi questionado era se "o doméstico poderia ser equiparado ás classes operárias", tendo em vista que ele exercia um trabalho "bem diverso" daqueles trabalhadores, sendo tao somente "um servidor do gozo individual de cada pessoa ou de cada família".65
Após um período de 90 dias, concedido pelos parlamentares para o recebimento de sugestoes dos interessados e para estudos da comissao, em margo de 1939, foram determinados os termos em que seria elaborada a regulamentagao do trabalho doméstico remunerado. Segundo os legisladores, nao deveriam ser garantidos ás(aos) empregadas(os) domésticas(os) os beneficios que até entao foram aplicados "ás classes trabalhadoras da indústria, do comércio e outras", nao devendo ser assegurado, portanto, "o direito de férias, indenizagao, estabilidade e outras vantagens, de que singularmente cogitava o antigo projeto do ex-deputado classista Alberto Surek". A Comissao de Legislagao Social apenas proporia ao governo que se estendesse aos estados o regulamento já existente na capital — previsto pelo decreto de 1923 —, "com o objetivo de proteger o lar dos elementos indesejáveis, ao mesmo tempo beneficiando os serventuários honestos".66
Apesar de tal orientagao ser estabelecida entre os legisladores, no início da retomada dos debates da Comissao de Legislagao Social em relagao á proposta de regulamentagao do servigo doméstico, o assunto ganhou as páginas da imprensa. Isso ocorreu especialmente porque aqueles que se colocavam contra a inclusao das(os) empregadas(os) domésticas(os) na legislagao trabalhista publicaram artigos de crítica sobre a questao. Havia periódicos que reprovaram a atitude dos parlamentares que tentavam levar adiante a discussao sobre os direitos das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os). Esse foi o caso do jornal A Batalha que, em seu comprometimento com o governo de Vargas, se posicionou afirmando se tratar de um "projeto de subversao social", por ser "inconveniente e de resultados perigosos".67 Em artigos publicados na referida folha o deputado Alberto Surek, envolvido na elaboragao do substitutivo, foi taxado de "comunista", "agitador" e "patrono das cozinheiras,
63 Diario do Poder Legislativo, 20 de setembro de 1935, 4741.
64 Diario do Poder Legislativo, 28 de setembro de 1935, 5077-8.
65 O Jornal, 28 de dezembro de 1938, 4.
66 Correio da Manha, 1° de abril de 1939, 3.
67 A Batalha, 25 de margo de 1939, 6.
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arrumadeiras e copeiras", por seu posicionamento na comissao de legislaçào a favor do encaminhamento do projeto com a proposta de garantía de direitos às(aos) empregadas(os) domésticas(os).68
Na imprensa circularam também artigos de opiniâo que defendiam a perspectiva patronal. Nesses textos, os argumentos mais comuns eram os de que seriam os empregadores quem mais precisavam de proteçoes legais, visto que as(os) empregadas(os) domésticas(os) já gozavam de "excessivas regalías", vivendo em uma "situaçao de privilégios". Ao contrário, os patroes nao tinham garantías "quanto à fidelidade, à competência e ao comportamento dos empregados domésticos".69 Além disso, vários questionamentos eram realizados acerca do sentido de se amparar aquelas(es) que, na visâo patronal, apenas cometiam abusos, pois se retiravam do domicilio sem justificativas, exigiam altas remuneraçoes, tiravam vantagens em períodos de tratamento de doenças, usavam os telefones residenciais como se fossem pessoais, faziam da casa dos patroes cortiços ao emprestar seus quartos a terceiros, entre outras práticas. Afinal, "o Estado, sob o fundamento de ir em apoio de uma classe, que nunca foi explorada, e antes sempre gozou de tratamento benévolo, nas casas em que serve, criar para as donas de casa, uma situaçao de irremediável dificuldade".70 E em meio a esse debate público, alguns chargistas trataram do assunto de forma humorística, ainda que sob o ponto de vista patronal.
IMAGEM 1 - "Nào tem que estrilar..."
Nao tem que estrilar...
(Oh empreñado» domésticos v3o (»osar 15 días de ferias anuaes).
A COSINHEIKA — I c mió a senhora achá bao, pruque brevemente a gente vamo gosá 15 diaa de feria anuá todos os mes».
Legenda: Na imagem, é possível observar alguns aspectos das dimensoes de género, raga e classe presentes nas relagoes de trabalho doméstico, bem como a questao dos direitos das(os) trabalhadoras(es) do setor: a cozinheira negra, retratada no estilo "black fad', falando de maneira errada em relagao a norma culta da língua e em tom de autoridade; e a patroa branca, com um olhar de surpresa — nem sua fala aparece na charge — em um contexto de disputa em torno da legislagao. Fonte: Careta, 11 de margo de 1939, 4.
68 ^ Batalha, 25 de março de 1939, 6.
69 O Jornal, 8 de fevereiro de 1939, 4.
70 Correio da Manha, 3 de fevereiro de 1939, 3.
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Do ponto de vista do debate parlamentar, a principal justificativa mobilizada pelos deputados para a exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) do universo dos direitos e das leis que já beneficiavam os trabalhadores da indústria e do comércio, envolvia a nogao de que nao "ser[ia] social a fungao do doméstico, o qual segundo essa doutrina, nao coopera com o seu trabalho para o capital". Em uma das reunioes realizadas pela Comissao Especial de Legislagao Social, ocorrida no início de abril de 1939, foi, entao, estabelecido o critério que deveria ser adotado no que tange ás(aos) empregadas(os) domésticas(os), sendo definido que tal atividade "serve a comodidade pessoal de cada patrao, nao na sua profissao, mas ao seu bem estar privado e da familia".71 Enfim, como afirmado pelo deputado Ozéas Motta, dois anos depois, ao rememorar esse processo, "todos podem viver perfeitamente e ganhar em suas respectivas profissoes sem o auxílio deles. A comodidade pessoal é que faz recorrer a tal classe de servidores", sendo essa também a orientagao dada pela Organizagao Internacional do Trabalho em suas convengoes.72
O entendimento que se estabelecia em torno do assunto era o de que havia uma clara distingao entre o trabalho doméstico e o trabalho "da indústria, do comércio, da produgao agrícola em geral e das profissoes liberais". E para além da sua natureza diferenciada, em relagao a outros setores da atividade humana, quando esse trabalho era realizado de forma remunerada, pelas(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) nos domicílios, ele seria realizado sob a administragao e a participagao da dona de casa, "com o alivio dos encargos precipuos dos empregados".73 Nesse sentido, o ministro Salgado Filho, presidente da Comissao Especial de Legislagao Social, afirmava ser preciso considerar o papel da dona de casa quando o "Estado se lembra de aplicar os seus cuidados a vida dos domésticos". Até porque, tal orientagao envolvia também limitagoes e contradigoes entre os princípios que orientavam a criagao das leis trabalhistas — atenuar os conflitos de classe — e a execugao da legislagao na esfera privada — históricamente orientada por valores paternalistas, patriarcais e escravistas, em cuja visao a vontade do "chefe de familia" era entendida como inviolável.
Cabia á Comissao, quando se apresentou, para seu estudo, o projeto que visava a estender os princípios da legislagao social á atividade doméstica, ter em vista que o Estado sempre visou assegurar a tranquilidade no domínio do trabalho. A legislagao social é a intervengo do Estado, para evitar o choque entre o capital e o trabalho, representados nas suas fontes mais características, patrao e operário, empregador e empregado. Demais uma legislagao social, com fixagao de horas de trabalho e encargos de férias e aposentadorias, seria inexequível com relagao a atividade dos domésticos, tao somente admitidos a exercer sua atividade no lar, que jamais perdeu o seu cunho de inviolabilidade em face da legislagao civil. Como, por exemplo, se conceberia a fiscalizagao trabalhista na própria atividade da família, entrando o fiscal numa residencia, a qualquer hora do dia, com o mesmo desembarago com que exerce a sua fungao num estabelecimento comercial ou industrial, num escritório etc.?!74
Por esse motivo, o ministro defendia a manutengao do "cunho original" que históricamente caracterizou a regulamentagao do servigo doméstico. Assim, para o ministro Salgado Filho, antes de se garantir direitos era necessário que se implementasse um regulamento que "disciplinasse as condigoes
71 Correio da Manha, 1° de abril de 1939, 3.
72 O Jornal, 7 de margo de 1941, 3.
73 Correio da Manha, 1° de setembro de 1939, 5.
74 Correio da Manha, 1° de setembro de 1939, 5, grifos da autora.
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de entrada e saída dos domésticos, nos seus empregos, tendo em vista a própria seguranza e defesa da coletividade". "E a base dessa regulamentagao ser[ia] fixada na carteira dos domésticos, que já é encargo da Polícia". Tudo isso visando ao controle moral e sanitário do trabalho doméstico remunerado, de modo a "resolver o problema da informagao idónea para a dona de casa que toma o servigo" e que frequentemente ficava sujeita "a admitir, na intimidade do lar, como servigal, uma pessoa criminosa ou viciada, (...) quando nao seja portadora de doengas e males transmissíveis".75
Sobre esse último aspecto, vale uma rápida análise. Considerava-se a necessidade das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) realizarem com regularidade exames de saúde, tendo em vista a importancia de um controle que nao fosse somente de cunho policial, mas que tivesse também um viés médico e sanitário. A justificativa dada pelo ministro do trabalho se orientava pelo principio da importancia da "questao da saúde da empregada, tendo em vista que entre os domésticos, é grande a percentagem da devastado pela tuberculose, pela sífilis e mesmo pelas moléstias de pele". Isso porque acreditava-se que as(os) empregadas(os) domésticas(os) poderiam oferecer inúmeros perigos para as familias ao serem portadoras(es) de doengas contagiosas.
Essa visao que desconsiderava as difíceis condigoes de saúde da classe trabalhadora igualmente nao era uma novidade em relagao ao tema, pois desde o final do século XIX, as criadas domésticas passaram, cada vez mais, a serem vistas, por autoridades públicas da cidade do Rio de Janeiro, como "portadoras do contágio" Em um contexto em que as políticas de saúde e higiene se direcionaram para as habitagoes coletivas e seus moradores, as moléstias "vieram a ser consideradas importagoes transportadas pelas criadas" para dentro dos domicilios, sobretudo por amas de leite e lavadeiras.76 Nesse sentido, entende-se a afirmagao dos defensores dos regulamentos especiais para o servigo doméstico, no final da década de 1930, que diziam que de "há muito que se impunha o controle médico dos domésticos", para que as familias nao ficassem "a merce de criaturas admitidas em nosso lar, capazes de transmitir doengas".77
O andamento dos debates sobre o projeto de regulamentagao da locagao dos servigos domésticos no ano de 1939 foi, portanto, marcado por derrotas para as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os). O substitutivo de autoria de Alberto Surek foi algo de inúmeras críticas entre os deputados e o artigo que tratava do direito de férias anuais foi o primeiro a ser excluido com voto unánime dos deputados. Além disso, assuntos que nao estavam presentes no projeto foram também abordados. Um deles envolvia a proposta de acabar com todas as agencias particulares de empregos — entendidas como "verdadeiras arapucas, que dao lucros aos seus dirigentes e nada garantem aos empregados" — em substituigao da criagao de uma agencia oficial, que pudesse intermediar contratagoes, selecionando as(os) empregadas(os), zelando por seus direitos e deveres e garantindo aos patroes idoneidade dos profissionais.78 Outra questao tratada compreendia a possibilidade de assistencia para os casos de acidentes de trabalho. Nesse caso, logo foi considerado pelo ministro Salgado Filho o principio de que "o sentido jurídico do acidente em trabalho que visa a garantir o profissional contra o risco que sofra no servigo de um industrial que aufere lucro com sua atividade", o que nao acontecia com o trabalho doméstico remunerado. E da mesma forma como ocorreu com a questao das férias, a maioria dos deputados rejeitou a inclusao de direitos relativos aos acidentes de trabalho.79
75 Correio da Manha, 1° de setembro de 1939, 5.
76 Sandra Lauderdale Graham, Protefao e obediencia: criadas e seus patroes no Rio de Janeiro, 1860-1910, (Sao Paulo, Companhia das Letras, 1992), 135;137.
77 Correio da Manha, 09 de dezembro de 1939, 4.
78 A Noite, 15 de agosto de 1939, 18. Sobre a história dessas agencias de emprego e as desconfiangas existentes em relagao a elas, ver: Souza, Criados, escravos e empregados..., 117-130.
79 Diário da Noite, 05 de setembro de 1939, 10.
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Destaque-se que outro tema importante que esteve presente nos debates foi a questao da inclusao dos motoristas particulares (os chamados chauffeurs), jardineiros, biscateiros e todos aqueles que trabalhavam por hora prestando servigos no ámbito doméstico. No caso dos motoristas, houve mobilizagoes em torno da nao inclusao da categoria no regulamento.80 Tais embates que envolviam os entendimentos sobre quem seriam os(as) trabalhadores(as) inclusos ou nao na regulamentagao do servigo doméstico eram importantes porque ser classificado oficialmente como empregado doméstico poderia significar a exclusao do universo dos direitos sociais, sobretudo porque estes estavam sendo construídos a partir de clivagens e hierarquias de genero e de raga. Afinal, o servigo doméstico era predominantemente ocupado por mulheres e, cada vez mais, mulheres negras. Enquanto a atividade profissional dos motoristas particulares era completamente dominada por homens, muitos dos quais brancos, tendo em vista as sutilezas presentes nas maneiras pelas quais as discriminagoes raciais e de genero operavam na esfera do trabalho doméstico remunerado.81
Em fungao da rejeigao do substitutivo, a Comissao de Legislagao Social voltou aos estudos e á formulagao de um novo projeto para a regulamentagao do servigo doméstico. Nas reunioes ocorridas no decorrer do segundo semestre de 1939, um anteprojeto foi proposto por Ozéas Motta, com a permanencia de várias determinagoes presentes em projetos anteriores, mas sem as garantias que haviam sido feitas ás(aos) empregadas(os) domésticas(os). Dessa maneira a questao da carteira profissional (que para serem expedidas precisavam de atestados de antecedentes criminais e de vacinas) continuou como elemento central da regulamentagao; acrescido dos termos sobre direitos e deveres de patroes e empregados (sendo o único dever do patrao "tratar com urbanidade o empregado, respeitando-lhe a honra e a integridade física"); e das orientagoes para os contratos (com mudangas nas indenizagoes em caso de demissoes, que dessa vez só seria paga quando nao houvesse aviso prévio da parte interessada, ficando a(o) empregada(o) obrigada(o) a pagar ao patrao se deixasse o emprego sem aviso e ao novo empregador a assumir o pagamento em situagoes em que ela(e) nao indenizasse o antigo patrao).82
No ano seguinte, em 1940, novamente o projeto sofreu modificagoes,83 sem perder a essencia de seus princípios, sendo aprovado pela Comissao de Legislagao Social e enviado ao Ministro do Trabalho. Em 1941, um decreto-lei foi assinado por Getúlio Vargas, regulamentando a locagao de servigos domésticos no Brasil. Instituía-se, assim, em ámbito nacional, sob a fiscalizagao do Ministério do Trabalho, com o apoio de autoridades policiais e sanitárias locais, para implementagao da lei, a obrigatoriedade do uso da carteira profissional por todas(os) trabalhadoras(es) domésticas(os), com penas de multa de 20 a 200 mil réis para os infratores e diretrizes para o exercício do contrato de trabalho.
Entre as disposigoes gerais do decreto constava que o Ministério do Trabalho deveria promover "os estudos necessários ao estabelecimento de um regime de previdencia social para os empregados domésticos". A ideia era enquadrar as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) em algum instituto de aposentadoria e pensoes já existente ou elaborar projeto de lei instituindo em seu benefício nova modalidade de seguro.84 Na verdade, desde 1939, o tema estava na pauta de discussoes da Comissao de Legislagao Social. Porém, devido ás muitas resistencias colocadas, incluindo aquelas feitas
80 O Jornal, 16 de agosto de 1939, 6; A Batalha, 14 de dezembro de 1940, 5.
81 L. A. Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro: relafdes de rafas numa sociedade em mudanza (Rio de Janeiro, UFRJ, 1998), 119.
82 Diario da Noite, 19 de setembro de 1939, 17.
83 Entre as mudangas, a mais evidentes se encontravam nas novas orientagoes acerca dos deveres dos empregadores, que para além de tratar com urbanidade o empregado, com respeito a sua honra e integridade física, deveriam "pagar pontualmente os salarios convencionados" e "assegurar as condigoes higiénicas de alimentagao e habitagao quando tais utilidades lhe sejam devidas". Ver: "Decreto n. 3.078, de 27 de fevereiro de 1941", Diario Oficial da Uniao, 1° de margo de 1941, 3.731.
84 "Decreto n. 3.078, de 27 de fevereiro de 1941", Diario Oficial da Uniao, 1° de margo de 1941, 3.731.
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pelos deputados responsáveis — como foi o caso do relator Ozéas Motta —, ao que tudo indica, nenhuma medida efetiva foi tomada nos anos seguintes.85
Ao fim de uma longa trajetória prevalecia, portanto, a dimensao do controle social, ficando de lado a perspectiva dos direitos sociais. Embora algumas propostas alternativas tenham sido defendidas entre os parlamentares, a exemplo das realizadas por nomes ligados ao movimento feminista de entao — ainda que com suas contradigoes —, e, sobretudo, pelo deputado Antonio Rodrigues de Souza para a criagao do Instituto de Aposentadorias e Pensoes; e mesmo com a atuagao de alguns grupos organizados, que de forma incipiente buscavam representar a categoria (como a Uniao Doméstica em seus memoriais para o Ministério do Trabalho ou a Casa da Empregada Doméstica em suas intervengoes na elaboragao de projetos), as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) permaneceram excluídas(os) do conjunto de direitos que estavam sendo garantidos aos demais trabalhadores urbanos brasileiros. A conquista de algumas garantias trabalhistas só comegaria a ocorrer nas décadas seguintes, após a atuagao das(os) próprias(os) trabalhadoras(es), que fortaleceram seus lagos associativos, visando a organizagao coletiva da categoria.86
Porém, para um entendimento mais amplo acerca do processo de exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) do universo dos direitos é preciso considerar que, para além da recuperagao dos debates, das propostas e dos sujeitos evolvidos, no plano de fundo dos conflitos entre "o capital e o trabalho", em uma formagao social recém-saída da escravidao, encontrava-se todo processo de desenvolvimento capitalista no Brasil e as maneiras pelas quais a esfera da reprodugao social estava sendo organizada. Afinal, entre os principais argumentos apresentados para a exclusao das(os) empregadas(os) domésticas(os) da CLT encontrava-se aqueles que negavam haver conexoes entre a vida familiar e as atividades económicas,87 fazendo com que o trabalho doméstico, mesmo em sua forma remunerada, passasse a ser compreendido como um trabalho que nao possuía "fungao social".
O trabalho doméstico remunerado na consolidagao do capitalismo brasileiro
Na história do desenvolvimento do modo de produgao capitalista, o período entre o último quartel do século XIX e a primeira metade do século XX caracterizou, grosso modo, a fase de consolidagao do capitalismo no Brasil. Seria esse um momento de fortalecimento e de disseminagao do mercado capitalista, em sua passagem de uma "economia escravista neocolonial" para uma "economia urbano-comercial", em que "a cidade se convertia em polo dinamico do crescimento capitalista interno".88 Porém, seria também aquele um período em que o país já vivia uma significativa transigao industrial. Esta se iniciou ainda no final do século XIX, mas se realizou, de fato, entre as décadas de 1930 e 1950, quando se esgotou o modelo agrário-exportador, baseado na produgao cafeeira, e ocorreu a progressiva implantagao de indústrias de bens de produgao no país, permitindo que se estabelecesse assim um novo padrao de acumulagao assentado na expansao industrial.
85 Correio da Manha, 18 de março de 1941, 5.
86 Sobre a formaçao da primeira associaçao de empregadas domésticas do Rio de Janeiro ver: Yasmin Gentirana Gonçalves Vicente, "'Sozinha nao posso': a Associaçao Profissional de Empregadas Domésticas do Rio de Janeiro (1961-1973)" (Dissertaçao de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2021).
87 Em relatório da comissao responsável pela elaboraçao da CLT, a principal justificativa para a exclusao do serviço doméstico das leis de proteçao ao trabalho estava a de que "a vida familiar apresenta aspectos de nenhuma similaridade com as atividades económicas em geral, nem mesmo com as de beneficência. Estender-lhe o plano de uma legislaçao feita e adequada a outras condiçoes pessoais e ambientes seria forçar a realidade das coisas". Marques, "Anatomia de uma injustiça secular...", p. 208.
88 Florestan Fernandes, A revoluçao burguesa no Brasil: ensaio de interpretaçao sociológica (Sao Paulo, Globo, 2006), 264; 269.
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Contudo, o processo que tornou o polo urbano-industrial em eixo dinámico da economía brasileira teve como um dos seus pressupostos a ampliaçâo dos chamados "serviços", que desde entâo se constituíram como uma das principais esferas a absorver a crescente força de trabalho urbana, sobretudo na capital do país. Como afirma Francisco de Oliveira, o crescimento dos serviços de consumo pessoal longe de ser apenas o "depósito do 'exército industrial de reserva'", era um fenómeno adequado ao padrâo de expansâo capitalista brasileiro tendente a uma profunda concentraçâo de renda. Isso porque "mesmo certos tipos de serviços estritamente pessoais, prestados diretamente ao consumidor e até dentro das familias, podem revelar uma forma disfarçada de exploraçâo que reforça a acumulaçâo" 89 Segundo o autor, a ausencia de uma infraestrutura urbana, que oferecesse determinados serviços necessários à reproduçâo das familias — como, por exemplo, lavanderias industriais e sistemas eficientes de transportes públicos —, aliada aos baixos salários oferecidos aos trabalhadores no mercado, permitia que os brasileiros de classe média desfrutassem de "todo tipo de serviços pessoais no nível da familia, basicamente sustentado na exploraçâo da mâo-de-obra, sobretudo feminina"90
Em um entendimento semelhante, Heleieth Saffioti afirmava que a numerosa presença de mulheres executando o trabalho doméstico de forma remunerada no Brasil refletia, pois, a profunda desigualdade existente na distribuiçâo da renda nacional.
De um lado, nâo há empregos, na estrutura ocupacional capitalista, para todos os que necessitam auferir rendimentos para a sua manutençâo e o sustento de dependentes, muitos dos quais nem sequer apresentam qualificaçâo mínima para tal. Os baixos salários das empregadas domésticas têm origem, em boa medida, exatamente nesses fatos. De outro há contingentes humanos que auferem altas rendas, podendo assalariar empregadas para os serviços domésticos. Uma distribuiçâo menos desigualitária da renda nacional poderia circunscrever o fenómeno da empregada doméstica a um pequeno contingente, como ocorre nos países industrializados do Ocidente. A má distribuiçâo da renda nacional, contudo, nâo constitui problema de fácil soluçâo, já que se vincula ao caráter dependente do desenvolvimento do capitalismo brasileiro (...).91
Considerando-se essa interpretaçâo, pode-se, portanto, afirmar que, ao contrário do que repetido durante os debates acerca da concessâo de direitos às(aos) empregadas(os) domésticas(os), a prestaçâo de serviços domésticos tinha, portanto, uma "funçâo social" na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, de uma perspectiva mais objetiva, o trabalho doméstico remunerado cumpria um papel central na organizaçâo do mercado de trabalho, especialmente em cidades como a do Rio de Janeiro. Conforme indicado anteriormente, desde o final do século XIX, os recenseamentos realizados no Brasil e na capital (os censos de 1890, 1906, 1920 e 1940) revelam o peso dos serviços domésticos na estrutura ocupacional até meados do século XX. Ainda que durante aquelas décadas tenha ocorrido uma diminuiçâo na participaçâo relativa das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) no conjunto da força de trabalho carioca, a prestaçâo de serviços domésticos concentrou em quase todo o período — com exceçâo do ano de 1940 — os maiores números de mulheres trabalhadoras, em comparaçâo com os setores secundário e terciário da economia da capital.
89 Francisco de Oliveira, Crítica a ra%ao dualista: o ornitorrinco (Sao Paulo, Boitempo, 2003), 58.
90 Oliveira, Crítica a ra%ao dualista..., 58.
91 Heleieth Saffioti, Emprego doméstico e capitalismo (Petrópolis, Vozes, 1978), 192.
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Além disso, embora históricamente o serviço doméstico abrigasse um contingente diversificado de trabalhadores, que incluía indivíduos nacionais e estrangeiros, brancos, mestiços e negros, a partir das primeiras décadas do século XX, o trabalho doméstico remunerado passou a absorver um número cada vez maior de mulheres negras. Em 1940, na entâo capital do país, elas representavam 71% das trabalhadoras domésticas e 61% do conjunto de trabalhadores, incluídos os homens, que prestavam serviços domésticos nos domicílios.92 Naquele momento, a maior parte das trabalhadoras domésticas era de nacionalidade brasileira, com pouco ou nenhum nível de instruçâo — eram altos os índices de analfabetismo no trabalho doméstico remunerado — e muitas eram migrantes rural-urbanas, oriundas do interior do territorio fluminense e de estados fronteiriços, que se direcionavam para a cidade do Rio de Janeiro em busca de empregos, conforme já apontado há muito tempo por Costa Pinto.93
É certo que o papel do trabalho doméstico remunerado ao empregar uma grande massa de trabalhadores, particularmente de mulheres trabalhadoras, cuja maioria eram mulheres classificadas oficialmente como pretas e pardas, estava de acordo com a dinámica de funcionamento do sistema económico-social em desenvolvimento. Como se sabe a integraçâo e as contradiçoes presentes nas relaçoes sociais capitalistas tornam género e raça caminhos para a organizaçâo da competiçâo dos trabalhadores assalariados no mercado de trabalho. Afinal, diferenciaçoes impostas à classe trabalhadora por opressoes específicas e formas de alienaçâo acabam por orientar segmentaçoes entre os trabalhadores, gerando hierarquias nas ocupaçoes, nas condiçoes de trabalho e salários, além de estruturarem exércitos de reserva.94 Nesse sentido, considerando-se um contexto histórico em que o mercado de trabalho na capital do Brasil se expandia de maneira muito competitiva, sendo alimentado por uma massa diversificada de trabalhadores com níveis próximos de qualificaçâo profissional — ou de auséncia dela —, o serviço doméstico provavelmente tornou-se um reduto ocupacional que mantinha em posiçâo subalterna parte substancial do contingente de trabalhadores urbanos.
Apenas para ilustrar esse processo pode-se lembrar que, como indicado por Caetana Damasceno, foi entre os anos 1930 e 1950 que a noçâo de "boa aparência" — uma espécie de metáfora racial que indicava o critério de "só para brancos" — começou a ganhar releváncia como princípio seletivo em situaçoes de recrutamento de mâo de obra, sobretudo para as mulheres trabalhadoras que buscavam empregos em escritorios e no comércio no Rio de Janeiro.95 Dessa forma, portanto, o sistema operava, por um lado, reproduzindo divisoes e exclusoes já existentes em uma sociedade patriarcal recém saída da escravidâo e, por outro, reelaborando e fortalecendo desigualdades entre grupos socialmente oprimidos, como mulheres e negros.
Em segundo lugar, a "funçâo social" do trabalho doméstico remunerado pode ser também vista a partir da perspectiva da reproduçâo ampliada do sistema capitalista. Como tem sido discutido por teóricas feministas, quando se analisa as relaçoes existentes entre as esferas da produçâo e da reproduçâo no sistema capitalista, verifica-se que apesar da aparência de separaçâo e de autonomia, existe uma relaçâo de dependéncia entre as duas esferas. Isso ocorre porque para que a dinámica de exploraçâo capitalista se desenvolva é preciso um mecanismo que garanta a reproduçâo da força de trabalho e as unidades familiares tém cumprido boa parte desse papel nas sociedades contemporáneas. É na família que o sistema encontra, principalmente por meio da opressâo das mulheres, as condiçoes
92 Pesquisas sobre os grupos de cor nas populares do estado de Sao Paulo e do Distrito Federal, 1951, 116.
93 Pinto, O negro no Rio de Janeiro..., 76-78; 154.
94 Abigail Bakan, "Marxismo e antirracismo: repensando a política da diferen^a", Outubro, n. 27 (2016); Charles Post, "Marxism and the race problem", em Marxist Sociology Blog, acesso em https://marxistsociology.org/2019/01/marxism-and-the-race-problem/.
95 Até entao a exigencia explícita da cor era feita em anuncios de jornais de oferta e de procura de trabalhadores, tal como ocorria no século XIX escravista. Caetana Damasceno, Segredos da boa aparencial da "cor" a "boa aparencia" no mundo do trabalho carioca (1930-1950) (Seropédica, UFRRJ, 2011), 127-130.
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necessárias, em termos de segurança, estabilidade e custos, para se reproduzir geracional e cotidianamente a força de trabalho (por meio de processos como os que envolvem a gravidez, a amamentaçâo e a socializaçâo de crianças, bem como atividades de cuidado de idosos e doentes e, sobretudo, do trabalho doméstico nao pago).96 Além disso, para que a força de trabalho seja socialmente reproduzida em formaçoes sociais capitalistas, sao necessárias outras relaçoes e espaços, pois a esfera da reproduçao compreende também as atividades realizadas em instituiçoes públicas e privadas, onde trabalhadores assalariados desempenham funçoes ligadas àquelas atividades (como é o caso de parteiras, enfermeiras, babás, cuidadores, professores, trabalhadores de limpeza, empregados domésticos etc.).97
Pode-se dizer que o trabalho doméstico remunerado se insere nessa estrutura de reproduçao social98 de diferentes formas. Uma delas diz respeito ao fato de que a manutençao do trabalho doméstico (seja ele pago ou nao pago), sob a responsabilidade das mulheres no seio das familias e no ámbito dos domicilios, tem ampla funcionalidade para o capitalismo. Como destaca Saffioti, a despreocupaçâo do sistema "para com a organizaçâo em moldes capitalistas das atividades domésticas" se explica pelo seu impacto na dinámica de acumulaçao.99 Isso porque tal processo liberaria uma ampla massa de mulheres no mercado de trabalho, para as quais nao haveria empregos. No caso das donas de casa, enquanto mulheres que se dedicam exclusivamente ao lar, elas estariam liberadas para assumir atividades remuneradas, pelo menos em determinados momentos, como quando os filhos entrassem em idade escolar. Já em relaçâo às trabalhadoras domésticas, elas "passariam a ser desnecessárias e, em países como o Brasil, certamente seriam em quantidade demasiada para serem absorvidas pelas atividades domésticas organizadas em termos capitalistas".100
Outro elemento a se considerar, nesse sentido, é que históricamente a prestaçao de serviços domésticos de forma assalariada libera um grupo de mulheres à custa de outro. Conforme observa
96 Sobre o assunto ver: Lise Vogel, Marxism and the oppression of women: toward a unitary theory (Chicago, IL, Haymarket Books, 2013); Tithi Battacharya, "How Not to Skip Class: Social Reproduction of Labor and the Global Working Class", in Social reproduction theory: remapping class, recentering oppression, editado por Tithi Battacharya, (Londres, Pluto Press, 2017).
97 Carmen Teeple Hopkins, "Mostly work, little play: social reproduction, migration, and paid domestic work in Montreal", in Social reproduction theory: remapping class, recentering oppression, editado por Tithi Battacharya, (Londres, Pluto Press, 2017).
98 Segundo Cinzia Arruzza, na tradiçao marxista feminista, reproduçao social significa algo preciso: "a manutençao e reproduçao da vida, em nível diário e geracional. Nesse contexto, a reproduçao social designa a forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produçao da populaçao é socialmente organizado". Cinzia Arruzza, "Consideraçoes sobre género: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo", Outubro, n. 23 (2015): 55.
99 Saffioti, Emprego doméstico e capitalismo, 192-193. Sobre o assunto ver também: Angela Davis, Mulheres, raça e classe (Sao Paulo, Boitempo, 2016), 225-244.
100 Saffioti, Emprego doméstico e capitalismo, 192-193. Vale destacar que no entendimento de Saffioti, "as atividades por empregadas em residéncias particulares nao se caracterizam como capitalistas". Ao afirmar isso a autora faz referéncia à distinçao presente n' O Capital, de Karl Marx, entre o trabalho (e o trabalhador) produtivo e improdutivo, sendo chamado de produtivo aquele trabalho que diretamente produz mais-valia, ou seja, o trabalho que seja consumido diretamente no processo de produçao visando à valorizaçao do capital. Por isso, a autora afirma que, sob o capitalismo, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) nao se encontram diretamente subjugadas(os) ao capital, pois sao remuneradas diretamente com renda pessoal. "Os mesmos serviços domésticos desempenhados em bares, restaurantes, hotéis, incluem-se no setor capitalista da economia, subordinando seus agentes diretamente ao capital. (...) Remuneradas com renda pessoal, as empregadas executam tarefas cujo 'produto', bens e serviços, sao consumidos diretamente pela familia empregadora, nao circulando pelo mercado para efeito de troca com o objetivo de lucro." Porém, na perspectiva de Saffioti, esse entendimento nao desconsidera a forma como as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) servem ao sistema capitalista nele se integrando na medida em contribuem para a sua reproduçao: "Organizadas, pois, de maneira nao capitalista, as atividades das empregadas domésticas tem lugar no seio de uma instituiçao nao capitalista — a familia — que, entretanto, se mostra bastante adequada à reproduçao ampliada do capital". Isso ocorre porque as atividades domésticas "concorrem para a produçao diária e a reproduçao da força de trabalho". "Nesta medida, as atividades domésticas contribuem para a produçao de uma mercadoria especial — a força de trabalho — absolutamente imprescindivel à reproduçao do capital". Saffioti, Emprego doméstico e capitalismo, 191; 195-196.
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Bridget Hill, "a disponibilidade de um vasto corpo de trabalho feminino relativamente barato", de mulheres trabalhadoras levadas a buscarem a prestaçâo de serviços domésticos como forma de sobrevivência, "indubitavelmente altera a qualidade de vida de mulheres da classe média e alta".101 Do ponto de vista das mulheres de setores médios, a presença de uma empregada doméstica em casa garante mais liberdade e estabilidade para o ingresso e a permanéncia no mercado de trabalho. De outra parte, em relaçâo às mulheres da classe dominante, o trabalho doméstico remunerado é um componente importante para a manutençâo da posiçâo e dos privilégios de classe. Vista sob esse aspecto, essa dinámica revela que as(os) empregadas(os) domésticas(os) nâo somente sâo centrais no processo de reproduçâo de uma parcela da classe trabalhadora, como também contribuem para a reproduçâo da própria classe dominante.
Quando se leva em conta o contexto histórico focalizado no presente estudo, essa perspectiva de entendimento da "funçâo social" do trabalho doméstico remunerado fica ainda mais clara. A expansâo do setor de serviços, em cidades como o Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, promoveu mudanças importantes no padrâo de emprego da força de trabalho feminina. Embora a maior parte das mulheres trabalhadoras permanecessem com escolhas limitadas a alguns segmentos da indústria e dos serviços pessoais, "o desenvolvimento de novas tecnologias e expansâo de ôrgâos do governo, empresas comerciais, serviços financeiros e comunicaçoes proporcionou um número crescente de cargos de escritório de bom nível para mulheres com instruçâo, da classe média e da classe baixa ascendente".102 Isso significou novos empregos para mulheres na administraçâo pública e no comércio (como balconistas, secretárias, datilógrafas, contadoras, auxiliares de escritório, telefonistas), além de áreas já feminilizadas como o magistério e a enfermagem. E tendo em vista a emergéncia, desde o final do século XIX, das "ideologias da feminilidade"103, presentes em discursos morais, religiosos, jurídicos e higienistas, sobre o lugar da mulher no quadro dos valores familiares burgueses (como dona de casa, mâe e esposa), para que as mulheres de segmentos médios e dominantes pudessem ingressar no mercado de trabalho ou seguir carreiras profissionais era preciso que trabalhadoras(es) assalariadas(os) fossem contratadas(os) para a prestaçâo de serviços domésticos.
Portanto, quando se recupera a história da exclusâo das(os) trabalhadoras(es) domésticas do conjunto de leis sociais (de cunho trabalhista, sindical e previdenciário) que foi construído nos anos 1930, percebe-se que a justificativa utilizada pelos legisladores, com apoio do setor patronal, de que o trabalho doméstico remunerado nâo possuía "funçâo social" e que as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) nâo seriam "cooperadores do capital" nâo passava de falácia. Essa foi uma justificativa a partir de entâo utilizada para manter uma parcela substancial da classe trabalhadora urbana fora do universo dos direitos que, ainda que de maneira limitada, estavam sendo garantidos aos demais trabalhadores urbanos assalariados brasileiros. Sendo importante lembrar que isso ocorria em um contexto em que o país se industrializava e se afirmava, definitivamente, como uma naçâo capitalista no cenário global. Daí tornar-se necessário a intervençâo do Estado, nâo somente em termos de investimento na infraestrutura, na produçâo e na administraçâo de ganhos e perdas entre os diversos estratos ou grupos das classes capitalistas, mas, sobretudo, no que se refere à regulaçâo de fatores como a estabilizaçâo do preço da força de trabalho e a atenuaçâo dos conflitos de classe por meio de uma legislaçâo especial.104
101 Bridget Irene Hill, "Algumas considerares sobre as empregadas domésticas na Inglaterra do século XVIII e do Terceiro Mundo de hoje", Varia História, n. 14 (1995): 33.
102 Susan K. Besse, Modernizando a desigualdade: reestrutura^ao da ideologia de género no Brasil, 1914-1940 (Sao Paulo, USP, 1999), 162163.
103 O termo é utilizado por Angela Davis, quando discute sobre a rela^ao entre o advento do capitalismo industrial nos Estados Unidos e o fortalecimento da inferioriza^ao social das mulheres. Davis, Mulheres, raf:a e classe, 24-25.
104 Oliveira, Crítica a razao dualista..., 36-41.
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No entanto, para finalizar esta reflexao, talvez fosse interessante considerar algumas das razoes pelas quais esses argumentos mobilizados pelos legisladores, em relaçao à exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(es) da CLT, se sustentaram ou mesmo se fizeram necessários. Isso tendo em vista toda a trajetória de discursos que justificavam a necessidade de regulamentos para o serviço doméstico, especialmente na capital, quando esse processo se iniciou, em ámbito municipal, desde o século XIX. Assim, por um lado, é fundamental lembrar que o próprio sistema mascara a releváncia do trabalho doméstico (pago e nao pago), caracterizando-o como um trabalho desvalorizado, no sentido de que nao produz mais-valor, e localizado em uma dimensao — a da reproduçao social — que se encontra subordinada à produçao. Além de ser um trabalho que, pela própria dinámica de funcionamento do capitalismo, tende a ser realizado por trabalhadores subalternizados, que se encontram oprimidos por outras relaçoes sociais que se integram às relaçoes de classe — que por si só já implica em expropriaçao, exploraçao e opressao.
Desde o século XIX, em várias partes do mundo industrializado, o serviço doméstico tornou-se nao só mais feminilizado, como racializado, constituindo-se esse como um fenómeno global, ligado à expansao colonial-imperial e aos padroes de migraçoes locais e internacionais. Em sociedades de recente passado escravista, como no sul dos Estados Unidos e no Brasil, raça e serviço doméstico tornaram-se inseparáveis.105 Nao por acaso, nesses dois países, em particular, as mulheres negras, libertas ou descendentes de escravizados, principalmente em espaços urbanos, tiveram até, pelo menos, meados do século XX, poucas alternativas de emprego para além da busca pela prestaçao de serviços pessoais nos domicilios.106
Por outro lado, é fundamental também considerar que o capitalismo se estruturava em sociedade recém-saida da escravidao. É evidente que permaneciam nas relaçoes sociais presentes no mundo do trabalho inúmeros valores e práticas relacionados ao passado escravista brasileiro. Nesse sentido, basta lembrar da existencia de um arcabouço ideológico que degradava o trabalho — e o trabalho doméstico em particular —, associando-o à condiçao dos individuos escravizados. No decorrer de séculos de escravidao, tanto no periodo colonial quanto após a independencia politica do pais, todo o trabalho repetitivo, manual e/ou que envolvia o uso da força fisica, por ser, particularmente, atribuiçao de mulheres e de homens escravizados, era amplamente visto de forma negativa, como castigo, atividade aviltante ou funçao de negros — africanos e afrodescendentes — e de "nao cidadâos" e/ou "cidadâos de segunda categoria" No caso do serviço doméstico, a degradaçâo do trabalho envolvia também a dimensao do caráter pessoal e intimo do tipo de serviço prestado, bem como a sua condiçao servil, onde a pessoa do(a) trabalhador(a) encontrava-se, por meio de relaçoes de dependencia
— marcadas nao somente por vieses raciais, mas também de genero —, à disposiçao daqueles para quem prestava o serviço.107
Foi, em parte, em funçao da existencia desse arcabouço, aliado a outras dinámicas, como as envolvia a construçao da liberdade em sociedades pós-escravistas, que o periodo do pós-abol^ao, na cidade do Rio de Janeiro, foi caracterizado por inúmeros conflitos entre patroes e empregados domésticos. Nesse contexto, os poderes públicos, principalmente no ámbito das municipalidades, tomaram uma série de iniciativas no sentido de estabelecer formas de controle social, entre as quais encontravam-se os regulamentos para o serviço doméstico. A discussao sobre regulamentaçao ganhou força no periodo da Aboliçao, e tinha a intençao de, a partir de discriminaçoes e estigmatizaçao sociais
— as quais colocavam as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) em uma posiçao subalterna dentro da própria classe trabalhadora que vivia seu processo histórico de formaçao —, estabelecer regras para
105 Susan Ferguson, Women and Work: feminism, labour and social reproduction (London, Pluto Press, 2020), 60-61.
106 Sobre o caso norte americano ver: Davis, Mulheres, raf:a e classe, 95-106.
107 Souza, Criados, escravos e empregados..., 36-37.
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aquelas(es) que prestavam servidos pessoais nos domicilios. Tais normas nao garantiam direitos, mas determinavam formas de identificagao e de vigilancia por parte de representantes públicos e autoridades policiais. E o decreto de n.° 16.107, de julho de 1923, foi um marco nesse processo, pois foi quando a discussao sobre a regulamentagao do servigo doméstico, entao restrita aos poderes municipais, passou a ser de responsabilidade federal, orientando também os debates subsequentes sobre o tema para o cenário nacional.
Desde entao, no transcurso das décadas seguintes, a suposta necessidade de regulamentagao policial do servigo doméstico continuou a mobilizar autoridades públicas da capital do país e ter apoio de grupos dirigentes, patronais e intelectuais. E a longevidade desse debate oferece pistas sobre a existencia de algumas permanencias relativas ao período de imediato pós-aboligao. Nas décadas de 1930 e 1940, as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) — em grande parte mulheres e homens libertos ou egressos da escravidao que buscaram a prestagao de servigos domésticos como forma de sobrevivencia material — continuaram a ser socialmente vistas(os) a partir de uma perspectiva de desconfiangas e de preconceitos. Essa perspectiva gerava preocupagoes e expectativas em relagao as suas condutas morais, suas condigoes de saúde, assim como sobre os perigos que poderiam oferecer a propriedade privada e as familias. Dessa forma, principios de suspeigao generalizada continuaram a se fazer presentes, sobretudo nos momentos em que se abriram novas oportunidades de se legislar sobre o assunto. Nao por acaso, o decreto de n. 3.078, de fevereiro de 1941, assinado por Getúlio Vargas, e válido para todo o território nacional, buscava atender as demandas patronais — ainda eivadas de valores e práticas escravistas — ao prever o uso obrigatório de uma carteira profissional específica para as(os) empregadas(os) domésticas(os). E os requisitos para a obtengao desse documento compreendiam atestados de boa conduta passados pela polícia e atestados de vacina e saúde fornecidos por autoridades e instituigoes médicas ou sanitárias.108
No entanto, o que os debates e as iniciativas empreendidos em torno da construgao da legislagao social revelam é que, apesar de evidentes continuidades em relagao a questao da regulamentagao do trabalho doméstico remunerado, nos anos 1930 e inicio dos anos 1940 houve uma mudanga de perspectiva. Nesse período, tornou-se necessário que antigos argumentos e medidas, ligados ao passado escravista e ao contexto da imediata pós-aboligao, fossem reformulados, e novas justificativas fossem elaboradas acerca do papel e da natureza do trabalho doméstico dentro do sistema económico e social, bem como sobre os mecanismos de diferenciagao entre os trabalhadores, baseados em aspectos de genero e de raga. Se as(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) permaneceriam em posigao distinta (subalternizada e estigmatizada) em relagao aos demais trabalhadores assalariados, tal como ocorria nas décadas imediatas ao fim da escravidao, durante a chamada Era Vargas as justificativas para isso eram outras. Os argumentos apropriados por legisladores e intelectuais que defendiam os interesses patronais para a exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) do universo dos direitos sociais seriam os de que tais trabalhadoras(es) nao eram funcionais ao sistema capitalista, e, consequentemente, as relagoes estabelecidas entre patroes(oas) e empregadas(os) domésticas(os) nao configuravam o típico conflito entre capital e trabalho.
Essa reformulagao nos discursos e entendimentos a respeito do trabalho doméstico remunerado, a qual colocaria a sua regulamentagao, em termos de direitos, em segundo plano pelas décadas seguintes, se fazia necessária porque era uma exigencia do próprio contexto histórico. Afinal, interessava a dinamica sistemica e coadunava com os interesses dominantes, a existencia de uma grande massa de trabalhadores urbanos informais, em condigoes de profunda vulnerabilidade e precariedade, mas que eram fundamentais para a manutengao da estrutura de reprodugao social a baixos custos para os patroes e o Estado, bem como para a organizagao do mercado de trabalho e do exército de reserva
108 "Decreto n. 3.078, de 27 de fevereiro de 1941", Diário Oficial da Uniao, 1° de margo de 1941, 3.731.
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de mäo de obra. Da mesma forma que a CLT, com todas as suas contradiçoes, foi fundamental para a instalaçao de um novo modo de acumulaçao, a exclusao das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) foi um elemento particular importante nesse cenário ao igualmente contribuir para o desenvolvimento capitalista brasileiro, com toda a sua estrutura de desigualdade social, a qual só seria em alguns momentos atenuada após muitas lutas das trabalhadoras e dos trabalhadores. E no caso daquelas(es) que se empregavam no serviço doméstico essas lutas tiveram que ocorrer de forma persistente ao longo da segunda metade do século XX, para que somente no inicio do século XXI ocorresse a täo esperada equiparaçao formal, em termos de direitos, aos demais trabalhadores assalariados — sem que isso significasse, de fato, o fim das injustiças sociais sofridas pelas(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) no Brasil.
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Outras fontes impressas
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(meses de abril a setembro de 1896). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1897. Instituto Brasileiro de Geografia E Estatística (IBGE). Pesquisas sobre os grupos de cor naspopulares do estado de Sao Paulo e do Distrito. Federal. Estatística Demográfica n.° 12. Rio de Janeiro: IBGE, 1951.
Fontes eletrónicas
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Decreto n.° 21.175, de 21 de margo de 1932. Diário Oficial da Uniao, Brasília, segao 1, 23 de margo de
1932. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21175-21-marco-1932-526745-publicacaooriginal-1-pe.html>
Decreto n.° 21.417-A, de 17 de maio de 1932. Cole^ao de Leis do Brasil, vol. 2. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21417-a-17-maio-1932-526754-publicacaooriginal-1-pe.html>
51, julio 2022: 1-32
Decreto n.° 24.637, de 10 de julho de 1934. Diário Oficial da Uniao, Brasilia, segao 1, 12 de junho de 1934. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-24637-10-julho-1934-505781-publicacaooriginal-1-pe.html> Decreto n.° 399, de 30 de abril de 1938. Cole^ao de Leis do Brasil, vol. 2. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-399-30-abril-1938-348733-norma-pe.html>
Decreto n. 3.078, de 27 de fevereiro de 1941. Diário Oficial da Uniao, Brasilia, segao 1, 1° de margo de 1941. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3078-27-fevereiro-1941-413020-publicacaooriginal-1-pe.html> Decreto n. 5.452, de 1° de maio de 1943. Diário Oficial da Uniao, Brasilia, segao 1, 9 de agosto de 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>