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A fun^ao-eurocentrismo na sociabilidade capitalista: uma crítica baseada na lógica-categorial da teoria marxista da dependencia
La función-eurocentrismo en la sociabilidad capitalista: una crítica basada en la lógica categórica de la teoría marxista de la dependencia
Eurocentrism as a function of capitalism: a critique based on the categorial-logic of the marxist theory of dependency
Lucas Carvalho Peto*
Resumo: O objetivo é apresentar uma crítica ao eurocentrismo como fun^ao específica e necessária da sociabialidade capitalista. Essa crítica é dupla e se dirige: a) á expropria^ao imposta aos países latinoamericanos pelos países europeus durante o desenvolvimento histórico do capitalismo e b) ás exposi^oes indeterminadas que nao analisam a dinámica que torna necessária a colocado da fun^ao-eurocentrismo no processo de desenvolvimento de capital enquanto modo de produ^ao para si. A lógica-categorial que fundamenta essa hipótese de trabalho se baseia nos escritos marxianos e na teoria marxista da dependencia.
Palavras-chave: Teoria Marxista da Dependencia. Capitalismo. Eurocentrismo. América Latina. História Económica.
Resumen: El objetivo es presentar una crítica al eurocentrismo como función específica y necesaria de la sociabilidad capitalista. Esta crítica es doble y aborda: a) la expropiación impuesta a países latinoamericanos por países europeos durante el desarrollo histórico del capitalismo y b) exposiciones indeterminadas que no analizan las dinámicas que hacen necesario ubicar la función eurocentrista en el proceso de desarrollo del capital como un modo de producción para si. La lógica que subyace a esta hipótesis de trabajo se basa en los escritos de Marx y en la teoría marxista de la dependencia.
Palabras-clave: Teoría Marxista de la Dependencia. Capitalismo. Eurocentrismo. América Latina. Historia Económica.
Abstract: The objective is to present a critique of Eurocentrism as a specific and necessary function of capitalism. This criticism is twofold and addresses: a) the expropriation imposed on Latin American countries by European countries during the historical development of capitalism and b) indeterminate analysis that do not present the dynamics that make it necessary to place the Eurocentrism function in the development process capital as a mode of production for itself. The logic that underlies this hypothesis is based on Marx's writings and on the marxist theory of dependency.
Keywords: Marxist Theory of Dependency. Capitalism. Eurocentrism. Latin America. Economic History.
Recibido: 7 de agosto 2021 Aceptado: 13 noviembre 2021
* Brasileiro. Professor no Departamento de Psicología Social da Universidade Estadual Paulista (UNESP) — Campus Assis. Financiamento: Funda^ao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo (FAPESP proc. 2017/05134-6). Correio eletrónico: lucas.peto@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9417-863X.
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Introdujo
A hipótese de trabalho apresentada a seguir pode ser resumida a afirmagao de que o eurocentrismo é uma fungao específica e necessária da sociedade capitalista. Há duas maneiras de estudar o eurocentrismo. A primeira consiste, de forma geral, em apreender aquele "[...] em suas múltiplas manifestagoes [...] em seguida, sao definidos os vários campos de expressao dessas manifestagoes"1. A tendencia é tratar as dimensoes mais indeterminadas do eurocentrismo como seu em si e para si dessa fungao. Nessa proposta, 1) o academicismo, 2) o apagamento e desvalorizagao das experiencias musicais, literárias, religiosas etc. das populagoes originárias em favor da "cultura europeia", 3) a imposigao de idiomas e religioes europeias aos povos originário, e 4) a centralidade da "Europa" e, mais especificamente, do homem branco europeu etc., aparecem como o em si do eurocentrismo e, ao mesmo tempo, como as externalizagoes que o tornam para si. Nesse mesmo sentido, as formas colonialismo e imperialismo sao analisadas apenas a partir da diversidade com que aparecem em diferentes conjunturas. Com isso, o eurocentrismo nao é posicionado como fungao na totalidade históricamente constituida do capital. É óbvio que "[...] existem vários tipos de colonialismo e neocolonialismo"2. Nao obstante, o que resulta de análises e comparagoes fenoménicas entre tais "manifestagoes eurocentricas" é uma compreensao que se limita apenas as "[...] determinagoes estruturais de significado geral, fora e acima dos contextos histórico-sociais através dos quais seria possível apreender sua importancia específica, para a formagao e o desenvolvimento do mercado, do sistema de produgao e da sociedade global"3. A segunda maneira se propoe a situar a fungao-eurocentrismo "[...] no campo da construgao ideológica do capitalismo como um todo"4. Há o reconhecimento da especificidade da relagao-capital no eurocentrismo, mas essa proposta nao expoe como se dá a dinamica (lógica e histórica) que torna necessária a colocagao dessa fungao para que a sociabilidade capitalista se torne para si. Além disso, ignora a lógica interna que dinamiza cada uma das atividades fancionais do eurocentrismo e das formas que se atualizam nele e por meio dele. Essas atividades sao necessárias para a reprodugao daquilo que se torna para si por meio de sua colocagao, mas esse movimento só é possível quando subsumem conjunturas históricas distintas através de mecanismos diversos. Daí que cada uma dessas atividades é relativamente independente de seu fundamento, mas apenas na medida em que o reproduz. O limite dessas duas possibilidades é a auséncia da exposigao da especificidade social, a relagao-capital, que implica na necessidade da fungao-eurocentrismo. Considerado esse horizonte, o objetivo é apresentar como a fungao-eurocentrismo se tornou necessária e quais consequéncias foram impostas a classe trabalhadora da América Latina e da África através dela.
Os argumentos apresentados se fundamentam na lógica marxiana das formas e fungoes que articulam a relagao-capital e na lógica-categorial de exposigao do contexto latino-americano legada pela teoria marxista da dependéncia.
1 Samir Amin, El eurocentrismo: crítica de una ideología, México, Siglo XXI Editores, 1989, p. 9.
2 Florestan Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 45.
3 Florestan Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 46.
4 Samir Amin, El eurocentrismo: crítica de una ideología, México, Siglo XXI Editores, 1989, p. 10.
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A funçâo-eurocentrismo: expropriaçâo capitalista e genocidio
O eurocentrismo só é relaçao-para-consigo-mesmo enquanto funçâo necessária de um tipo específico de sociabilidade, a saber, a capitalista. Tal funçâo é colocada pelas formas colonialismo e imperialismo e se torna atividade por expropriaçoes e genocidios. Ser atividade significa trasladar as condiçoes da lógica capitalista do em si para fora e possibilitar que se tornem para si. Em outras palavras, significa tornar possível que o capitalismo se efetue a partir da criaçâo de suas próprias condiçoes. Nesse sentido, o eurocentrismo só pode ser estudado, analisado e exposto como uma funçâo necessariamente posicionada na lógica do capital. Ao mesmo tempo, significa que os mecanismos utilizados pela funçâo-eurocentrismo sâo condiçoes e possibilidades do próprio capitalismo. As expropriaçoes e os genocidios, as atividades da funçâo-eurocentrismo, sâo necessárias à relaçâo-capital. Nâo por suposiçâo, mas porque as categorias capitalistas nada sâo além de formas moldadas às necessidades da relaçâo-capital para que a produçâo, acumulaçâo, e centralizaçâo capitalista do mais-valor resultante da exploraçâo da força de trabalho da classe trabalhadora se reproduza. A relativa independencia que as formas e suas funçoes assumem nâo sobrepoe sua posiçâo na lógica capitalista. A efetividade dos fenómenos por meio dos quais o eurocentrismo se impoe, sejam esses culturais, religiosos, linguísticos, históricos etc., só pode ser avaliada na medida em que sejam compreendidos como unidade daquilo que os colocou, suas contingencias e possibilidades. Essa dinámica implica uma relativa subordinaçâo à especificidade da relaçâo social nas quais se desenvolvem. Embora nâo possam ser exclusivamente reduzidos a uma pretensa "infraestrutura", esses fenómenos devem ser analisados a partir da lógica funcional que formalizam. Isso se dá porque os fenómenos da funçâo-eurocentrismo só sâo relaçao-para-consigo-mesmo enquanto sâo determinados e contêm em si suas formas, a saber, colonialismo, imperialismo e dependencia. As últimas sâo, ao mesmo tempo, conteúdo para suas funçoes e exterioridade para aquilo que as coloca. Mas só sâo exterioridades na medida em que carregam, necessariamente, o conteúdo daquilo que as pós. Sâo, por isso, exterioridades necessárias. Com efeito, "[...] o que é interior está também presente exteriormente, e vice-versa; o fenómeno nada mostra que nâo esteja na essência; e nada está na essência que nâo seja manifestado"5. Por isso, as atividades fundamentais do eurocentrismo só podem ser compreendidass dentro dos limites das formas capitalista. A base da funçâo-eurocentrismo nâo é independente daquilo que coloca a forma que se atualiza por por tal funçâo. Ou seja, nâo é possível separar os genocídios, as expropriaçoes e os apagamentos culturais das populaçoes originárias que resultam das experiências históricas colonialistas e imperialistas daquilo que coloca os seus limites e por elas se reproduz: o capital. Com efeito, se tais atividades sâo a base do eurocentrismo e esse é uma funçâo do capitalismo, as primeiras sâo necessárias e colocadas de acordo com a lógica do último.
A funçâo-eurocentrismo fora históricamente colocada e está ligada às táticas expansionistas empreendidas por alguns países europeus a partir do século XV. Essas táticas foram respostas à expansâo dos impérios asiáticos e árabes, principalmente o Otomano, a partir do século XIV6. A expansâo daqueles restringiu o avanço dos países capitalistas europeus em direçâo ao leste. Essa restriçâo diminuiu o acesso às rotas comerciais, aos mercados, às mercadorias e à mâo de obra necessárias para a expansâo do capital nos países centrais da Europa. Com isso, os países da Europa "central" se lançaram à busca de novos territórios para subjugar e de montantes ainda nâo explorados de força de trabalho ao mesmo tempo em que intensificavam o processo de expropriaçâo da classe
5 Georg Wilhem Friedrich Hegel, Enciclopédia das ciencias filosóficas em compendio (1830) — volume I: a ciencia da lógica, Sao Paulo, Edi^óes Loyola, 2012, p. 261.
6 Alan Mikhail. Sultan Selim, His Ottoman Empire, and the Making of the Modern World, New York, Liveright.
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trabalhadora europeia dos meios de produçâo e conséquente transformaçâo dessa em mercadoria. Tais movimentos nao sao contrários nem podem ser resumidos à teleologia da causalidade. Ambos foram necessários e colocados de acordo com a lógica de desenvolvimento específica do capital. Nesse sentido, devem ser entendidos a partir da subsunçâo das contingencias históricas às necessidades do capital. É nessa dinámica que deve ser buscada a origem da funçâo-eurocentrismo. Isso recoloca o eurocentrismo em seus limites: uma funçâo colocada pela relaçâo-capital no processo de criaçâo de suas próprias condiçoes e necessidades.
Por isso, Marx é categórico ao afirmar que aquilo que possibilitara a aurora do modo de produçâo específicamente capitalista na Europa fora "[...] a descoberta das terras auríferas e argentíferas na América, o exterminio, a escravizaçâo e o soterramento da populaçâo nativa nas minas"7. Nâo apenas isso, mas também "[...] o começo da conquista e saqueio das Índias Orientais [e] a transformaçâo da África numa reserva para a caça comercial de peles-negras caracterizam a aurora da era da produçâo capitalista"8. Esse processo se expandiu através das formas clássicas de imposiçâo do eurocentrismo: colonialismo e imperialismo. As apologias morais e éticas do eurocentrismo se furtam a mencionar que "[...] a própria fuga precipitada de riquezas (dos países colonizados) no momento da emancipaçâo nâo é mais do que o ponto culminante de um longo processo de desacumulaçâo"9. Aí está o fundamento, o motivo e o "[...] último ato com o que o colonizador conclui sua 'missâo civilizadora'"10. Essa missâo fora levada a cabo por meio do genocídio e expropriaçâo das populaçoes indígenas da América Latina, da populaçâo africana e do tráfico de aproximadamente 15 milhoes de escravas e escravos da África11. Nâo porque essas populaçoes eram "inferiores" ou necessitavam das benesses e da "salvaçâo" da modernidade europeia, mas porque a expansâo capitalista dos países centrais da Europa estava ameaçada pelas potencias da Eurásia. O que une a brutalidade das experiencias europeias na América Latina e na África é a lógica capitalista. Em ambos os casos,
[...] as terras eram expropriadas para satisfazer as necessidades de plantaçoes e minas envolvidas no comércio de longa distáncia. A mâo de obra escrava era adquirida e transportada ao longo de milhares de quilómetros para servir o mesmo propósito. As populaçoes indígenas eram deslocadas, e seus direitos de propriedade anulados, com a justificaçâo de que nâo tinham feito devido uso da terra. Tanto as populaçoes indígenas como os povos escravizados (através de diferentes formes de deslocamento) sofreram a expropriaçâo das suas culturas e identidades: foram reduzidos a fragmentos, sem esperança de recuperar os mundos perdidos. [...] E onde a expropriaçâo através da subjugaçâo se revelou insuficiente, os colonizadores europeus recorreram às suas soluçoes finais: a exclusâo, expulsâo ou liquidaçâo12.
O motor da funçâo-eurocentrismo nâo é cultural, moral ou ético. Nâo se pode resumir essa funçâo à imposiçâo indeterminada de valores europeus a territórios e populaçoes nâo-europeias em detrimento de sua linguagem, crenças, história e valores originários. Antes de ser uma coaçâo cultural ou identitária, o eurocentrismo é um mecanismo capitalista de expropriaçâo, exploraçâo da força de trabalho e transferencia de mais-valor. Ou seja, é uma funçâo social. De forma mais específica, é uma
7 Karl Marx, "Das Kapital I", Karl Marx y Friedrich Engels, Werke Band 23, Berlim, Dietz Verlag Berlin, 1962, p. 750.
8 Karl Marx, "Das Kapital I", Karl Marx y Friedrich Engels, Werke Band 23, Berlim, Dietz Verlag Berlin, 1962, p. 750.
9 Agustín Cueva, O desenvolvimento do capitalismo na América Latina, Sao Paulo, Global, 1983, p. 25.
10 Agustín Cueva, O desenvolvimento do capitalismo na América Latina, Sao Paulo, Global, 1983, p. 25.
11Herbet Klein, Historia mínima de la esclavitud, México, El Colegio de México, 2013, p. 31.
12John Darwin, After Tamerlane: The Rise and Fall of Global Empires 1400-2000, New York, Bloomsbury Press, 2008, p. 23-24.
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funçâo da sociabilidade capitalista. Caso se quisesse falar em "cultura eurocêntrica", isso deve ser feito a partir dos limites da lógica do capital. É apenas dentro dos limites dessa dinámica que as dimensoes culturais e políticas da funçâo-eurocentrismo aparecem como contingencias que se tornam possibilidade e necessidade. A pretensa universalidade dos "valores" violentamente impostos às populaçoes da África e da América Latina, o individualismo, a meritocracia, a "modernidade", a democracia, a oposiçâo entre "civilizado" e "bárbaro", etc. é lastreada na forma-mercadoria. O estabelecimento dessa como forma basilar da sociabilidade coloca aquela aparente universalidade na medida em que os mesmos externalizam a forma-valor, tornando possível que a mesma sejapara si. De forma mais clara, seu fundamento é circunscrito pela legalidade do capital, em que a troca se dá entre sujeitos de direito que se confrontam como "proprietários". A igualdade formal que sustenta a forma-jurídica capitalista aparelha o projeto de subjugaçâo das populaçoes nâo-europeias ao apresentar qualquer regulaçâo societal que nâo se funde na forma-mercadoria como "atrasada" e carente de esclarecimento.
Realocar o problema do eurocentrismo para além do culturalismo e da ideología nâo significa negar essas dimensoes. Pelo contrário, ambas sâo atividades por meio dais quais a funçâo-eurocentrismo atualiza a forma que a coloca. O propósito é deixar claro que nâo há indeterminaçâo na base das coerçoes culturais, ideológicas e políticas. O lastro de todas é a própria dinámica societal que se torna para si por meio delas. A contraposiçâo entre "civilizaçâo" e "barbárie", estandarte último do eurocentrismo, nâo é indeterminada. A "civilizaçâo" que se impoe é a que se baseia na propriedade privada especificamente capitalista dos meios de produçâo e na exploraçâo da força de trabalho como mercadoria. Nâo é a "civilizaçâo europeia", mas a dinámica capitalista, formalizada no colonialismo e no imperialismo que é exportada e imposta a países nâo-europeus através do genocídio, da expropriaçâo, da escravidâo, da democracia burguesia, do racismo, do feminicídio, da xenofobia, da transfobia, da islamofobia etc. Todas essas manifestaçoes da funçâo-eurocentrismo adquirem uma aparente e relativa independência em relaçâo ao propósito último do capital, a saber, "[...] a extraçâo máxima do trabalho excedente dos produtores de qualquer forma compatível com seus limites estruturais"13. Mas essa independencia, ao mesmo tempo aparente e relativa, só se mantém na medida em que sustenta e assegura a expansâo e intensificaçâo daquelas formas e limites. Isso significa que o capital só pode se tornar para si e se expandir através da criaçâo e colocaçâo de suas possibilidades e suas condiçoes. Nesse processo, as últimas assumem características internas que dinamizam conjunturas específicas do tecido social, mas esse "tecido social" nâo é trans-histórico. É a sociabilidade capitalista. Por isso, afirmar que o eurocentrismo é uma funçâo daquela estrutura social nâo resulta em rejeitar as dinámicas internas das atividades que a atualizam. O que se propoe é que o fundamental da funçâo-eurocentrismo só pode ser compreendido quando a mesma é analisada a partir da exposiçâo da lógica societal que a coloca, a subsume, por ela se torna para si e através dela se impoe e se reproduz, a relaçâo-capital.
A teoria marxista da dependencia e a funçâo-eurocentrismo na América Latina
A teoria marxista da dependencia se estrutura a partir de um esforço lógico-político de elucidaçâo e revoluçâo das conjunturas assumidas pelas relaçâo-capital na América Latina. Esse esforço, que se orienta pela derrubada da lógica capitalista e nâo por tentativas de reformá-la, se fundamenta na
13 István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transiçao, Sâo Paulo, Boitempo, 2011, p. 99.
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compreensâo de que as "[...] categorias nâo podem substituir ou mistificar os fenómenos a que se aplicam"14. Decorre dessa posiçâo que uma exposiçâo da formalizaçâo capitalista na América Latina deve ser pautada por uma intensificaçâo categorial que apresente as formas históricas através das quais o capital se externaliza para si nos diversos contextos nacionais latino-americanos. É apenas a partir da compreensâo da colocaçâo da especificidade espaço-temporal que cria para si a relaçâo-capital na América Latina, formalizada a nível nacional em relaçâo com as formas históricas internacionais15, que se torna possível compreender os efeitos e causas da funçâo-eurocentrismo no contexto latinoamericano.
As formas assumidas pelo capital em sua externalizaçâo para si na América Latina e na África através da funçâo-eurocentrismo sâo o colonialismo e o imperialismo. Mas essas duas formas nâo se limitam à dimensâo "cultural". Elas criam a dinámica espaço-temporal capitalista que formaliza a possibilidade de que a relaçâo-capital se expanda a partir da subsunçâo da classe trabalhadora latinoamericana às demandas internacionais. É assim que, na América Latina, "[...] a organizaçâo local da sociedade e do espaço reproduz a ordem internacional. Os modos de produçâo tornam-se concretos sobre uma base territorial historicamente determinada. Deste ponto de vista, as formaçoes espaciais seriam uma linguagem dos modos de produçâo"16. Mas cada uma dessas formas possui características históricas distintas que impedem a simples reduçâo de qualquer uma a outra ou a equiparaçâo entre elas. Nâo obstante, "[...] isso nâo significa uma desconexâo ou descontinuidade absoluta entre etapas"17. Todas sâo formas capitalistas e a primeira "[...] nâo só constitui o piso estrutural sobre o qual se levantará a próxima, mas também lega toda uma série de vínculos concretos de dependência, que facilitarâo a transiçâo no momento oportuno"18. O que as diferencia nâo é seu fundamento, serem formas de exploraçâo da força de trabalho e expropriaçâo dos meios de produçâo, mas os mecanismos utilizados para subsumir a estrutura societal originária à dinámica do capital. Esses mecanismos se atualizam e transformam com a passagem da subsunçâo formal à subsunçâo real e isso torna mais difícil o processo de igualar as violências eurocêntricas infligidas às populaçoes da América Latina. Mas, de forma geral, no processo de subsunçâo das sociedades originárias da América Latina e da África às necessidades do capital, as populaçoes foram subsumidas à lógica desse sob a forma-mercadoria como classe trabalhadora. Além disso, os países europeus saquearam os recursos naturais dos territórios por eles invadidos e impuseram dívidas que eram revertidas como crédito nos países "centrais" para a manutençâo dessas invasoes. As diversas experiências genocidas e de expropriaçâo a que foram subsumidas as populaçoes que habitavam os períodos nâo-europeus "do oeste", apesar das diferenças, foram empresas capitalistas de expansâo que objetivam acumular e concentrar o mais-valor expropriado das classes trabalhadoras nâo-européias na mâo da classe burguesa dos países europeus. Em resumo,
[...] sâo conhecidas as vinculaçôes do antigo sistema colonial [e imperialista — L.C.P] com o capitalismo comercial. Aquele sistema foi organizado, em todos os setores da economia colonial (mineraçâo, produçâo agropecuária para exportaçâo ou consumo interno e comércio), para promover a drenagem de riquezas da América Latina para
14 Ruy Mauro Marini, "Dialética da dependencia", Ruy Mauro Marini, Dialética da dependencia, Buenos Aires, CLACSO, 2000, p. 107.
15 Milton Santos, "Sociedade e espado: a forma^ao social como teoria e método", Milton Santos, Espafo e Sociedade, Petrópolis, Editora Vozes, 1979, p. 14.
16 Milton Santos, "Sociedade e espado: a forma^ao social como teoria e método", Milton Santos, Espafo e Sociedade, Petrópolis, Editora Vozes, 1979, p. 14.
17 Agustín Cueva, O desenvolvimento do capitalismo na América Latina, Sao Paulo, Global, 1983, p. 38.
18 Agustín Cueva, O desenvolvimento do capitalismo na América Latina, Sao Paulo, Global, 1983, p. 39.
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a Europa e, portanto, para expandir o capitalismo na Espanha, em Portugal, na Holanda ou na Inglaterra, na França etc. Está claro que ele exigia, em termos relativos, vastos investimentos financeiros, ampla inovaçâo tecnológica e um mínimo de racionalidade administrativa. No entanto, a conexâo capitalista pura e irredutível da economia colonial [e imperialista — L.C.P] procedia do circuito comercial e realizava-se no mercado europeu. [...] Por isso, sob a vigencia do antigo sistema colonial, tanto o mercado quanto o sistema de produçâo foram cuidadosamente resguardados de impulsoes que poderiam minar ou destruir o sentido explorador da colonizaçâo19.
Uma das respostas teórico-políticas à pretensâo de universalidade e inevitabilidade desse processo é a teoria marxista da dependencia. O objeto da TMD é "[...] a exposiçâo da estruturaçâo do modo de produçâo do capital na América Latina"20. A partir da TMD se compreende que a América-Latina "[...] se desenvolve em estreita consonância com a dinámica do capitalismo internacional"21. O mesmo pode ser dito sobre a imposiçâo do capitalismo à África. Sem apagar as diferenças entre as conjunturas históricas, é possível afirmar que, como a América Latina, a África "[...] viu-se integrada no sector da economia capitalista mundial, em que a mais-valia era sugada para alimentar o sector metropolitano"22. Isso se somou à brutal escravidâo capitalista imposta às populaçoes originárias e ao tráfico transcontinental a que fora submetida parte da populaçâo africana. O resultado foi a "[...] expatriaçâo sistemática da mais-valia, produzida pela força de trabalho africana, para fora do continente [e o] desenvolvimento da Europa como parte do mesmo processo dialético em que a África se via subdesenvolvida"23. Na América Latina, da mesma forma, a violenta subsunçâo à relaçâo-capital está relacionada "[...] ao movimento da acumulaçâo primitiva em escala mundial, entendida como um processo que, além de implicar a acumulaçâo sem precedentes em um dos pólos do sistema, supoe necessariamente a desacumulaçâo, também sem precedentes, no outro extremo"24. O que marca essa relaçâo é a exploraçâo dos países latino-americanos pelos países europeus. Essa exploraçâo se caracteriza, primeiro, pela subsunçâo dos países latino-americanos à lógica capitalista na condiçâo de "[...] colônia produtora de metais preciosos e de géneros exóticos"25. A expropriaçâo dos recursos naturais e a exploraçâo da força de trabalho classe trabalhadora na América Latina permitiram o aumento da concentraçâo de mercadorias nos países centrais. Essa concentraçâo se dera por meio do financiamento das empresas colonialistas e imperialistas pelos bancos europeus. A exploraçâo da classe trabalhadora latino-americana também impulsionou "[...] a expansâo dos meios de pagamento que, ao mesmo tempo que permitiram o desenvolvimento do capital comercial e bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e abriram o caminho para a criarâo da grande indústria"26. O desenvolvimento histórico do capitalismo impôs ao países latino-americanos outras
19 Florestan Fernandes, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 46-47.
20 Lucas Carvalho Peto, "A superexploraçâo da força de trabalho da populaçâo preta no Brasil", Revista Izquierdas, Santiago, 49, 2020, p. 4287.
21 Ruy Mauro Marini, "Dialética da dependencia", Ruy Mauro Marini, Dialética da dependencia, Buenos Aires, CLACSO, 2000, p. 107-108.
22 Walter Rodney, Como a Europa subdesenvolveu a África, Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 210.
23 Walter Rodney, Como a Europa subdesenvolveu a África, Lisboa, Seara Nova, 1975, p. 210.
24 Agustín Cueva, O desenvolvimento do capitalismo na América Latina, Sâo Paulo, Global, 1983, p. 23.
25 Ruy Mauro Marini, "Dialética da dependencia", Ruy Mauro Marini, Dialética da dependencia, Buenos Aires, CLACSO, 2000, p. 108.
26 Ruy Mauro Marini, "Dialética da dependencia", Ruy Mauro Marini, Dialética da dependencia, Buenos Aires, CLACSO, 2000, p. 108.
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formas, também históricas e conjunturais, de transferência de valor aos países europeus: privatizaçâo dos serviços básicos, ataques à soberania nacional que objetivaram colocar os recursos naturais dos países latino-americanos à disposiçâo dos monopólios europeus/norte-americanos, obstruçâo da prática de subsídios em favor da emissâo de royalties, dividendos e juros sobre capital próprio, apoio a regimes autoritários que se alinhavam aos interesses das classes burguesas europeias/norte-americanas, imposiçâo de práticas de austeridade fiscal e arrojo salarial como contraparte a empréstimos cedidos pelo organismos internacionais, sobretaxaçâo na importaçâo de produtos latino-americanos etc. No caso das relaçoes entre a América Latina e os países Europeus, isso significa também que a cultura e a história específica de cada nacionalidade é subsumida à lógica da acumulaçâo do valor. Esse processo, obviamente, nâo acontece sem resistência e as classes trabalhadoras latino-americanas se organizaram e se organizam no contexto da luta de classes a partir das conjunturas históricas nas quais estâo inseridas. Todas essas formas se fundamentam na superexploraçâo da força de trabalho das classes trabalhadoras da América Latina. Mas a TMD nâo é apenas uma resposta teórica. Enquanto lógica-categorial,
[...] a TMD expoe as violências cometidas contra a classe trabalhadora nas realidades latino-americanas a partir de análises das contradiçoes que compoem essa mesma realidade. [Ao mesmo tempo - L.C.P], a TMD nâo se furta a um posicionamento na luta de classes. Desde os primeiros esboços legado por Vánia Bambirra, Ruy Mauro Marini e Theotônio dos Santos, a teoria marxista da dependência se posiciona junto à classe trabalhadora nos esforços para a construçâo de uma sociedade emancipada do jugo do controle sociometabólico imposto pelo capital27.
No limite da luta de classes capitalista, a teoria marxista da dependência auxilia no entendimento de que a funçâo-eurocentrismo nâo pode ser superada nos limites daquilo que a coloca, a saber, o capital. Ela ataca o problema no nível da especificidade da sociabilidade capitalista e nâo apenas na dimensâo dos fenómenos que dela resultam. Contra a "universalidade" dos valores europeus, expoe a funcionalidade e a utilidade que embasam a necessidade que faz com que a adoçâo de valores apareça como "inevitável" para qualquer sociedade que ambicione alcançar a "modernidade". Nâo é o eurocentrismo que se apresenta como "universal", mas o seu fundamento último, a saber, o capital. É a relaçâo social que se coloca pela funçâo-eurocentrismo que se apresenta como humanitária, a saber, aquela que tira os povos da "barbárie" e os finca na pretensa benevolência das relaçoes de mercado capitalistas. Com esse entendimento, a TMD deixa claro, contra as indeterminaçoes do "subdesenvolvimento", os esforços "desenvolvimentistas" e as apologias explicitamente capitalistas, que as posiçoes históricas e atuais dos países latino-americanos nâo sâo resultado de nenhum tipo de inadequaçâo aos padroes "avançados" das modernas "democracias" burguesas. As últimas só existem, e aqui se incluem os estados de bem-estar social do pós-segunda guerra, porque sâo sustentadas pela expropriaçâo e exploraçâo da força de trabalho da classe trabalho no outro polo da divisâo internacional do trabalho.
O eurocentrismo enquanto funçâo capitalista é central no desenvolvimento histórico dessa dinámica. A teoria marxista da dependência evidencia que essa funçâo extrapola a pura sustentaçâo "ideológica" do capitalismo e a apresenta como a própria reproduçâo para si do capital. Essa intensificaçâo categorial proposta pela TMD segue os apontamentos feitos por Marx no capítulo 25 do primeiro volume d'O capital. Ali, Marx afirma que a forma colonialismo "[...] visa à fabricaçâo de
27 Lucas Carvalho Peto, "A superexploraçâo da força de trabalho da populaçâo preta no Brasil", Revista Izquierdas, Santiago, 49, 2020, p. 4288.
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trabalhadores assalariados nas colônias"28. É por isso que "[...] o segredo que a economia política do Velho Mundo descobre no Novo Mundo e proclama bem alto, a saber, o de que o modo capitalista de produçâo e acumulaçâo — e, portanto, a propriedade privada capitalista — exige o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriaçâo do trabalhador"29. Aí está exposta a base da funçâo-eurocentrismo sobre a qual se ergue a lógica-crítica da teoria marxista da dependencia. A última esclarece que a primeira apresenta a expropriaçâo capitalista como último e mais "avançado" degrau no desenvolvimento da história da humanidade. Mas essa história nâo é universal. É a história do próprio capital em seu movimento para si como sujeito da sociabilizaçâo. Para que isso aconteça, como apontou Marx, é necessário a expropriaçâo da classe trabalhadora. Nessa configuraçâo, o que a TMD revela é que o universal da funçâo-eurocentrismo é a especificidade capitalista intensificada pela necessidade de remeter para os países "centrais" da Europa o mais-valor expropriado das populaçoes latino-americanas.
Nesse sentido, a lógica-categorial da teoria marxista da dependencia representa um esforço contra o capital e sua funçâo-eurocentrismo. Ela expoe de forma específica as determinaçoes históricas da expropriaçâo imposta à classe trabalhadora pelos países europeus por meio do colonialismo, do imperialismo e da dependencia. Ao mesmo tempo, se contrapoe às tentativas indeterminadas e universalizantes de exposiçâo do desenvolvimento histórico do capitalismo na América Latina. As tentativas neoclássicas, desenvolvimentistas e neoliberais nâo dâo conta de explicar o processo histórico de formaçâo da América Latina porque partem dos fundamentos do próprio capital que sâo, em última instancia, eurocentricos. Também nâo conseguem explicar o que há de específico nas lutas de classes capitalistas nos contextos latino-americanos porque nâo consideram que essas decorrem, diretamente, da expansâo capitalista europeia. As lutas das classes trabalhadoras latino-americanas sâo, ao mesmo tempo, pela autodeterminaçâo e contra o expansionismo capitalista europeu/norte-americano que busca manter a América Latina na posiçâo de continente superexplorado. É uma guerra contra as burguesias nacionais e internacionais. No limite, a luta contra a funçâo-eurocentrismo é uma guerra contra o capital.
Notas de conclusâo
O objetivo foi apresentar o eurocentrismo como funçâo necessária na expansâo do capital para si, em geral, e na expansâo do capitalismo europeu em particular. Nessa configuraçâo, seus desdobramentos nâo podem ser circunscritos às dimensoes "culturais", "políticas", "ideológicas", "identitárias" etc. Uma exposiçâo radical do eurocentrismo o compreende como funçâo especificamente capitalista que atualiza as formas colonialismo e imperialismo que, por sua vez, tornam para si a produçâo, acumulaçâo e expansâo da forma-valor por meio da exploraçâo da força de trabalho, da expropriaçâo dos meios de produçâo e da "universalizaçâo" da forma-mercadoria.
A lógica-categorial marxiana e a teoria marxista da dependencia fornecem ferramentas lógicas e de luta que possibilitam analisar o eurocentrismo como uma forma social especificamente capitalista e nâo como uma dimensâo alheia às "especificidades económicas". O eurocentrismo é uma funcionalidade especificamente capitalista que cria os espaços necessários para a reproduçâo da sociabilidade que a colocou. Os efeitos dessa funcionalidade se espraiam por todo o tecido social. É por ela que se cria uma parcela da classe trabalhadora que é empurrada para condiçoes de exploraçâo da força de trabalho mais intensificadas, a saber: as populaçoes pretas e os povos originários. Essa
28 Karl Marx, "Das Kapital I", Karl Marx y Friedrich Engels, Werke Band 23, Berlim, Dietz Verlag Berlin, 1962, p. 793.
29 Karl Marx, "Das Kapital I", Karl Marx y Friedrich Engels, Werke Band 23, Berlim, Dietz Verlag Berlin, 1962, p. 802.
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compreensâo se confronta com a naturalizaçâo burguesa da lógica do capital que apresenta as categorias capitalistas como dimensoes transhistóricas, isoladas e fechadas em si. A partir da TMD é possível reposicionar o eurocentrismo e trazer à luz sua funcionalidade específica.
Os resultados da funçâo-eurocentrismo nâo se resumem à dimensâo "cultural". Entre 1400 e 1900, o eurocentrismo esteve na base do genocídio e escravidâo que aniquilou mais de 70 milhoes de vidas indígenas originárias da América Latina30. No que tange às populaçoes escravizadas na África, aproximadamente 15 milhoes de pretos e pretas foram traficados para a América Latina pelos países europeus. A taxa de mortalidade durante o "trajeto" percorrido pelos "navios negreiros" foi de, em média, 15%31. Essa média ficou em torno de 30% no "inicio" da escravizadâo e tráfico transatlántico de pretos e preta da África para o "novo mundo"32. A motivaçâo desse processo nâo fora indeterminadamente "ideológica". Com efeito, "[...] as características pessoais, o cabelo, a cor e a arcada dentária, [as] características "sub-humanas" [dos escravos e das escravas] tâo largamente defendidas, eram apenas racionalizaçoes para justificar um simples fato económico: que as colônias [europeias] precisavam de trabalho e recorreram ao trabalho escravo negro porque era mais barato"33. Além de ser mais barato, o domínio das terras africanas pelos países europeus garantia a contençâo da expansâo dos impérios Euroasiáticos. O capitalismo no Brasil, por exemplo, foi construído a partir da exploraçâo desse tipo específico de escravidâo e da subsunçâo da força de trabalho preta traficada à lógica da produçâo do mais-valor. Do total de quase 15 milhoes de pretas e pretos traficados, o Brasil foi o destino de "[...] em torno de quatro milhoes de homens, mulheres e crianças, equivalente a mais de um terço de todo aquele comércio"34. Resumir o eurocentrismo ao apagamento acadêmico, musical, literário, ideológico etc. das populaçoes originárias da América Latina e da África é limitado e indeterminado. Esse apagamento é determinado pela lógica capitalista e deve ser exposto como mecanismo de subsunçâo dessas populaçoes à forma-mercadoria como força de trabalho a ser explorada para o desenvolvimento, acumulaçâo e concentraçâo privada do mais-valor.
As "consequências" da funçâo-eurocentrismo, que sâo as necessidades externalizadas do capital, ainda se fazem presentes. Nâo há "[...] praticamente nenhum norte-americano, africano, europeu, latino-americano, indiano, caribenho ou australiano — a lista é bem grande — que nâo tenha sido afetado pelos [colonialismos e imperialismos — L.C.P] do passado"35. Nâo obstante, os resultados das violências europeias perpetradas contra as populaçoes da América Latina e da África nâo sâo os mesmos para os povos dos continentes africanos, americanos e europeus. Atualmente, 30,5% da populaçâo da América Latina vive em condiçoes de pobreza e 11,3% está submetida à pobreza extrema36. Nas áreas rurais esses números chegam a 45,7% e 21,2% respectivamente37. A populaçâo dos países da América Latina e do Caribe é de 653,962 milhoes de pessoas38. Em número totais, isso
30 Marcelo Grondin, Moema Viezzer, O maiorgenocidio da historia da humanidade, Toledo, GFM Gráfica e Editora, 2019, p. 289.
31Marcel Dorigny, Bernard Gainot, Atlas das escravidoes: da Antiguidade aténossos dias, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2017, p. 30.
32 Marcel Dorigny, Bernard Gainot, Atlas das escravidoes: da Antiguidade até nossos dias, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2017, p. 30.
33 Eric Williams, Capitalism & Slavery, Virginia, The William Byrd Press, 1994, p. 19.
34Joao José Reis, "Presenta negra: conflitos e encontros", Instituto Brasileiro de Geografía e Estatística, Brasil: 500 anos de povoamento, Rio de Janeiro, IBGE, 2007, p. 81.
35 Edward Said, Culture and Jmperialism, New York, Vintage Books, 1994, p. 5.
36 Comissao Económica para a América Latina e o Caribe, Anuario Estadístico de América Latina y el Caribe 2020, Santiago, CEPAL, 2021, p. 24.
37 Comissao Económica para a América Latina e o Caribe, Anuario Estadístico de América Latina y el Caribe 2020, Santiago, CEPAL, 2021, p. 24.
38 Comissao Económica para a América Latina e o Caribe, Anuario Estadístico de América Latina y el Caribe 2020, Santiago, CEPAL, 2021, p. 13.
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significa que 1) 199,458 milhoes de pessoas sâo obrigadas a viver na pobreza [a populaçâo somada de Alemanha, França e Inglaterra é 205 milhoes de pessoas], e 2) 73,8 milhoes de pessoas estâo abaixo da linha da pobreza extrema. Na África, há países em que quase mais de 80% da populaçâo é obrigada a viver com menos de 3 dólares por dia (linha de pobreza estipulada pelo Banco Mundial). É o caso, por exemplo, das populaçoes da República Centro-Africana, da República Democrática do Congo, de Madagascar, de Mozambique e da Zambia. As populaçoes desses países, somada, chega a 170 milhoes. Tomando 80% como média, chega à conclusâo de que mais de 136 milhoes de pessoas, apenas nesses países, vivem abaixo da linha de pobreza. Esses números vâo piorar como decorrencia da pandemia de Covid-19. Mas a pandemia nâo é o fundamento da piora, ela é o catalisador. O que coloca essa situaçâo que assola a classe trabalhadora do mundo todo, e de maneira mais brutal as populaçoes da América Latina, de partes de Ásia e da África, é o capitalismo. Os breves e poucos exemplos aqui levantados sâo efeitos da funçâo-eurocentrismo, a saber, os resultados necessários para a manutençâo e expansâo da relaçâo-capital. Eles ajudam a destacar, mais uma vez, que o eurocentrismo nâo é apenas uma dimensâo cultural. Sendo assim, a luta contra o mesmo nâo pode se resumir a ele. A luta contra a funçâo-eurocentrismo deve ser uma luta contra o capital.
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