Научная статья на тему 'POETICAS DA NEGRITUDE E DA EXCLUSãO EM JORGE AMADO'

POETICAS DA NEGRITUDE E DA EXCLUSãO EM JORGE AMADO Текст научной статьи по специальности «Философия, этика, религиоведение»

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NEGRITUDE / EXCLUSãO / IDENTIDADE / CULTURA / LITERATURA BRASILEIRA / FICçãO

Аннотация научной статьи по философии, этике, религиоведению, автор научной работы — Rodrigues Da Cunha Betina Ribeiro

Este trabalho pretende observar como Amado escreve em Suor sobre as coisas do homem, do negro e de seu universo real, fictício e idealizado (aos 16 anos, o escritor também morou em um dos sobrados da Ladeira), desenha também um espaço de interação no qual as trocas, as identidades fazem entender de representações mentais, de suas diferenças, de formas de conhecimento individuais e sociais

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Текст научной работы на тему «POETICAS DA NEGRITUDE E DA EXCLUSãO EM JORGE AMADO»

Poéticas da negritude e da exclusâo em Jorge Amado

Poetics of the black and the exclusion in Jorge Amado

Betina Ribeiro Rodrigues da Cunha*

Resumo

Este trabalho pretende observar como Amado escreve em Suor sobre as coisas do homem, do negro e de seu universo real, ficticio e idealizado (aos 16 anos, o escritor também morou em um dos sobrados da Ladeira), desenha também um espado de intera^ao no qual as trocas, as identidades fazem entender de representares mentais, de suas diferen?as, de formas de conhecimento individuais e sociais.

Palavras-chave: Negritude, exclusao, identidade, cultura, literatura brasileira, fic^ao.

This paper aims to understand how Amado writes in Suor (Sweat) about the things of men and their real universes, fictional and idealized (at the age of 16, the writer also lived in one of the houses of the Slope), also drawing a space of interaction in which the exchanges and identities promote the understanding of mental representations of their differences in individual and social knowledge.

Key-words: Blackness, exclusion, identity, culture, Brazilian literature, fiction.

Recibido: 3 noviembre 2016 Aceptado: 18 enero 2017

No caso da Bahia, qual a marca fundamental? Eu vos diria, Senhora, que essa marca é a mistura. Aqui tudo se misturou, num amálgama colossal. Sangues, rafas, religiSes, costumes, negros e brancos, indios e mamelucos, ricos e pobres, e mulatos com mulatas, mestizos com mestizas e foi surgindo essa cor de pele e essa consciencia democrática, a condifáo cordial e a dofura, o prazer sensual de cada instante e de todas as minúcias. Ai meu Deus, somos faces somadas, multiplicadas, e dentro de nós, em nosso sangue, as contradifSes encontraram o caminho da convivencia1

* Brasileira, Professora de Literatura na Universidade Federal de Uberlândia, Dr2. em Letras com Pós-Doutorado em Literatura Comparada. betina@ufu.br.

Abstract

Mundo: Hemisfério Sul, Brasil, Bahia, Salvador, Ladeira do Pelourinho, n° 68.

Visto da rua o prédio nao parecia tao grande. Ninguém daria nada por ele. É verdade que se viam as filas de janelas até o quarto andar. Talvez fosse a tinta desbotada que tirasse a impressao de enormidade. Parecia um velho sobrado como os outros, apertado na ladeira do Pelourinho, colonial, ostentando azulejos raros. Porém era imenso. Quatro andares, um sótao, um cortijo nos fundos, a venda do Fernandes na frente, e atrás do cortijo uma padaria árabe clandestina. 116 quartos, mais de 600 pessoas.2

Um espa9o, um lugar, um endere9o, uma imagem. Um prédio, na Ladeira do Pelourinho, em Salvador, situa e abriga, nessa desapaixonada descri9ao, inúmeras lutas, sofrimentos e angústias. Esse sítio histórico, que se confunde com a idéia do mito fundante da Bahia e da terra onde come9ou o Brasil, como real9a Gilberto Freyre em um dos seus poemas sobre uma visita á Bahia - "Bahia/Salvador/Sao Salvador/Todos os Santos/Tomé de Souza/Tomés de Souza/padres, negros, caboclos/Mulatas quadraronas octorunas/ a Primeira Missa/ os males/ indias nuas/ vergonhas raspadas"3 - representa um cenário dramático, de face noturna e sombria, significando, muito especialmente nessa obra, uma metáfora das desigualdades sociais, que remontam á escravidao e á fun9ao de lugar de tortura dos escravos para, em seguida, evocar a sordidez e a perplexidade como pano de fundo de uma situa9ao social e política sempre devedoras de dignidade e humaniza9ao do sujeito. O próprio Jorge Amado, em entrevista a Anne Raillard (1990, p. 33), fala de suas vivencias em Salvador, apontando para o lugar emblemático e simbólico do Pelourinho:

Durante algum tempo morei numa ruela vizinha ao Largo do Pelourinho, no cora9ao da velha Bahia, um lugar admirável por sua arquitetura e terrível pelo que significa -o pelourinho era o lugar em que eram castigados publicamente os escravos. A casa em que eu morava era uma constru9ao colonial alta e sombria, onde se amontoava uma por9ao de pessoas exóticas. Eu morava bem em cima, numa água-furtada. Hoje transformaram-na num hotel, juntando dois sobrados, e até colocaram uma placa indicando que é a casa descrita em Suor ; é exatamente o que eu mostro nesse romance. Suor é verdadeiramente a minha vida no Pelourinho.

Neste lugar a dialética conteúdo/continente, intuida e reconhecida pela configura9ao da imagem-endere9o inicia e, ao mesmo tempo, sela seu destino em um mesmo ángulo:

Jorge Amado, Carta a uma leitora sobre romance e personagens. In: Jorge Amado, Povo e Terra: 40 anos de literatura, Sao Paulo, Livraria Martins Editora, 1972, p. 28.

Jorge Amado, Obra completa, Vol. 1, Suor, Sao Paulo, 17a Ed., Editora Martins Fontes, 1968. p. 230.

3Gilberto Freyre, Talvezpoesia, Belo Horizonte, 3a Ed., Editora Boa viagem, 2014, p. 34. Obs.: O título da obra é assim justificado por Freyre em prefácio á mesma obra, p. 25: "Para a reuniao em livro desses experimentos de um mau, porém insistente e já velho aprendiz de poeta (que, por amor a tais aventuras, vem ás vezes traindo sua prosa, sem substituí-la senao por arremedos de poesia), eu próprio adotei, mais por prudencia que por modéstia, o título Talvez poesia ".

Mundo. Um olhar que cruza esse mesmo ángulo, ponto de partida e de chegada: mundo.

Um mundo. Um mundo fétido sem higiene e sem moral, com ratos, palavrSes e gente. Operários, soldados árabes de fala arrevesada, mascates, ladrees, prostitutas, costureiras, carregadores, gente de todas as cores, de todos os lugares, com todos os trajes, enchiam o sobrado. Bebiam cachaba na venda do Fernandes e cuspiam na escada, onde por vezes, mijavam. Os únicos inquilinos gratuitos eram os ratos4.

Um mundo, macro e micro texto de uma escritura lúcida, permeada de uma única cara, a do homem, do homem que ali vive e trabalha e sua. Assim nasce Suor, titulo metafórico e exemplarmente sintético, a reunir, na sua ínfima gota, toda uma parcela de sujeitos-objetos e sujeitos-impressoes, que delineiam a perspectiva da exclusao sob sua mais consistente e essencial dor.

Suor é o terceiro livro de um, ainda jovem, Jorge Amado. Foi escrito em 1934, aos 22 anos do escritor - na maturidade, este apontava para o obra como o "caderno de um jovem aprendiz". Entretanto, o romance já delineia temas, tipos sociais e preocupares que serao mote para toda uma produ9ao literária, política e para a adesao á ideologia e principios do comunismo.

Este trabalho pretende observar como Amado, escrevendo sobre as coisas do homem e de seu universo real, ficticio e idealizado (aos 16 anos, o escritor também morou em um dos sobrados da Ladeira), desenha também um espa9o de intera9ao no qual as trocas, as identidades fazem entender de representa9oes mentais, de suas diferen9as, de formas de conhecimento individuais e sociais. Esse mesmo espa9o, em contrapartida, chega - de maneira intuitiva, quase paradoxal, poética e, ao mesmo tempo dolorosa na sua crueza - a elevar o papel do negro na sua condi9ao igualmente excludente, como um exercicio de respeito e reconhecimento de seu papel para constru9ao deste universo de representa9oes e identidades trincadas.

Nesse sentido, é interessante anotar a importancia de se fazer jus á face do negro, nao alimentando deturpa9oes que desvalorizam a sua contribui9ao para a forma9ao da cultura e da identidade nacional, reabilitando, como uma tarefa de toda a comunidade - nao só de um escritor - as vozes ancestrais e primitivas da nossa origem e história.

Temáticas especificas do negro tem ocupado bastante espa9o nas lutas sociais do Brasil. Aliás, diversos historiadores, antropólogos e estudiosos, poetas e escritores, dentre eles Eduardo de Oliveira e Oswaldo de Camargo, figuras como Bastide, Florestan Fernandes, Sérgio Milliet, Henrique L. Alves ou, ainda, Tristao de Athayde, sao nomes gra9as aos quais se criam instancias de legitima9ao da literatura negra em Sao Paulo com estudos, critica literária e, sobretudo, devolvendo-lhes o outro lado da história - dessa história "branca" que o tem negado como povo possuidor de valores, culturas, identidade e cidadania.

Talvez por essa universalidade e voca9ao plural, o termo negritude, a despeito de uma série de interpreta9oes conceituais, marque um espa9o de diálogo e pontua9ao desta

Amado, Op Cit, p. 231.

presença como um traço a configurar tal reconhecimento.

Para tanto, busca-se um diálogo com os escritores e pensadores de origem francesa, provavelmente os primeiros a usarem o termo "négritude" com esse fim. Criada pelo poeta martinicano Aimé Césaire, a palavra aparece pela primeira vez em Cahier d'un retour au pays natal (1939), considerado por André Breton como um dos maiores "monumentos líricos" em língua francesa, espécie de meditaçâo poética e política, nas quais se entrelaçam, entre ruptura e programa, os fios de uma experiência pessoal e da existência torturada de uma raça. Nessa obra, a palavra "négritude" aparece com três sentidos: a) o povo negro; b) o sentimento ou a vivência íntima do negro; c) a revolta e a consternaçâo, sendo considerada por Lígia F. Ferreira, em brilhante artigo publicado na Revista Via Atlântica5, de uma negritude "pacífica", de inspiraçâo nitidamente senhoriana em suas aspiraçôes universalistas, embora preveja a necessidade de se aculturar a diferentes tempos e espaços.

Com um esforço genuíno de resgate e sobrevivência deste negro, Amado, por exemplo, desenha a vendedora de acarajé e outros acepipes baianos:

Ela ocupava quase toda a porta com latas de querosene cheias de mingau e munguzá e o tabuleiro enfeitado de desenhos, coberto com a alva toalha rendilhada, debaixo da qual os acarajés e as moquecas de aratu se acomodavam junto a cuia de barro que levava o molho de pimenta. A preta ficava ali até alta madrugada, quando os últimos negros e mulatos se tinham recolhido e a cidade dormia, fechadas as janelas coloniais, silenciosos os sinos das igreja inúmeras. A carapinha já estava branca e ela sabia historias velhas como as igrejas, historias da escravidäo, de ioiös e de iaiás, de escravos e mucamas. Por isso, os pretos mo?os se sentavam perto dela.6

Com tra9os firmes, mas líricos e poéticos, o prosador- político-cidadao estampa uma elegante e sóbria figura, a concentrar um respeito incontestável e uma reverencia pela idade e substáncia quase eternas dessa negra, que guardava, em sua memória, recortes e histórias de uma sensibilidade afogada pelos maus-tratos e pela indignidade. Os pretos mo9os, ao compartilharem esse universo, tornam-se guardioes e responsáveis pela manuten9ao de tal patrimonio referencial e simbólico de uma ra9a, de um povo e de um sofrimento.

Essa mesma negra, em outro momento, presentifica um novo-velho debate e, em uma voz sábia e profética adverte:

No princípio da ladeira, um negro bêbado cantou a trova do escravo:

Xiquexique é pau de espinho, Umburana é pau de abeia, Gravata de boi é canga,

Ligia Ferreira, "Negritude", "Negridade", "Negrícia": história e sentidos de tres conceitos viajantes", In: Via Atlántica n° 9 jun/2006, Sao Paulo, Editora USP, p. 163-185. 6 Amado, Op Cit., 250.

Paletó de negro é peia

A negra sorriu:

- Tá vendo?

- Tou. A gente liberta o negro.

A negra ia apanhando o tabuleiro. Henrique ajudou-a a botar as latas vazias em cima. Ela

perguntou:

- Você sabe qual a coisa mais melhor do mundo?

- Qual é, minha tia?

- Adivinhe.

-Mulher...

- Nao.

- Cachaça ...

- Nao.

- Feijoada....

- Nao sabe o que é? É cavalo. Se nao fosse cavalo, branco montava em negro...7

A negritude, construida na obra de Jorge Amado acaba por mostrar que o discurso literário de Jorge Amado, sobretudo em Suor, se faz presente a partir de representaçôes carregando um comportamento dialético entre um Eu e um Outro, entre um estar-ser, entre um passado-presente que torna-se parte de uma necessidade premente - nao mais de um desejo ou de uma promessa ou de uma expectativa - de viver. E ser reconhecido

As narrativas sao uma prosa fragmentada, que se assemelha a uma sucessao de temas e contos reunidos por um único endereço, Ladeira do Pelourinho, n° б8, sobrado com quartos subdivididos até o máximo da promiscuidade, opressivo e desumano respeito ao homem. Este sobrado, objeto simbólico de um cotidiano de miséria, de lixo e de suores, se mistura, fazendo valer - em uma voz polifónica que resgata, dentre tantos tipos excluidos em uma subcondiçao humana - uma consciência lirica a denunciar a exploraçao do outro e o caminho revolucionário.

Observa-se assim um lirismo experimentado nao mais na dor do coraçao e das vivências afetivas, mas, sobretudo, um lirismo que aponta para os sentimentos nascidos da dor do cotidiano e do movimento especular que se inicia em um sujeito que se reflete e se reconhece na miséria do outro; um espelho sem face, cuja humanizaçao somente poderá se construir por esse processo de lucidez e reconhecimento da marginalidade e da negritude que, por sua vez, instaura a exclusao como uma verdade inexorável e, entretanto, consolidada por um agenciamento social sempre implacável, retrato em branco e preto de uma realidade cruel e antagónica ao próprio exercicio de ser homem.

Em uma dramática pintura dos dramas da coletividade e das massas excluidas, tem-se, no casarao do n° б8, uma enormidade de personagens sem herói; personagens sem destino, sem sentido e dignidade, cujos corpos, grotescos e disformes muitas vezes, anunciam a ausência como um falso paradigma de normalidade e de existência constantemente provisória. Os capitulos, cada um com um nome e um recorte das cenas

Amado, Op Cit, 254.

vivenciadas nesse lugar - ou contos, como se pode também imaginar as narrativas independentes - refletem, a partir de um espa9o urbano bem delimitado, um espa9o social, este buscando, por outro lado, desenhar uma ética da existencia marginalizada e esquecida: "Os ratos"; "Sótao"; "Gringos"; "Balada"; "Noticia de negro escravo"; "Museu"; "Sexo"; "Diversoes"; "Religiao"; "Suor"; "Crise"; "K.T. Espero"; "Imigrantes"; "Bodega"; "Palha9os"; "Nomes sem sobrenomes"; "68. Ladeira do Pelourinho"; "Escada"; "Multidao". Sao, ao todo, 19 títulos que nao se referem exclusivamente a um personagem ou situa9ao mas que encenam o dramático cotidiano de inúmeros heróis anónimos, sobreviventes em um espa9o de dor e opressao continuadas.

Nesse espa9o de prova9ao dos inúmeros tipos, com seus dramas e aprendizados, chama a aten9ao, inicialmente, a descri9ao da escada, anunciando um rito de passagem misterioso, obscuro e macabro:

Os ratos passaram, sem nenhum sinal de medo, entre os homens que estavam parados ao pé da escada escura. Era escura assim de dia, e de noite subia pelo prédio como um cipó que crescesse no interior do tronco de uma árvore. [...] De manha os homens saiam quase todos. O vozerio das mulheres aumentava. Lavavam roupa. Ruidos de máquinas de costura. A tosse de uma tuberculosa no sótao. Os homens voltavam á tarde, cansados. A escada os devorava um a um.8

Tal como uma simbólica esfinge, a escada anuncia nao só um local de passagem mas também a passagem para um entre-lugar, a compor uma nova na9ao construida por discursos múltiplos que desenham uma identidade e a possibilidade de leitura de um outro espa9o de enuncia9ao, descentrado dos conceitos cristalizados das culturas oficiais.

Nessa visada, entende-se o ensaio ainda atual de Silviano Santiago quando reconhece que "o intelectual brasileiro, no séc. XX vive o drama de ter de recorrer a um discurso histórico, que o explica, mas que o destruiu, e a um discurso antropológico, que nao mais o explica, mas que fala do seu ser enquanto destrui9ao"9.O discurso histórico fala aqui por um jovem escritor, Jorge Amado, preocupado com o romance "proletário", um escritor a lembrar que:

Minha gera9ao, esses romancistas do ano trinta, chegava para a vida e para a cria9ao novelística com o peito oprimido sob a angústia do Brasil e do Homem brasileiro, em busca do caminho para a solu9ao dos nossos problemas. Variados foram os caminhos seguidos, mas o ponto de partida era o mesmo: o amor ao Brasil e ao seu povo, a necessidade de solidarizar-se com o homem e o seu drama, fosse o drama da terra e da fábrica, fosse o drama interior de sua solidao.10

Se, por um lado, o escritor vive a experiencia do nacional idealizado e de sua identidade, com todas as agruras e lacunas e paixoes que a escritura nao desvela ou nao

8 Amado, op. cit., 229-230.

9Silviano Santiago, Vale quanto pesa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, p. 17. 10 Amado, op. cit., p 13.

antecipa, o Largo do Pelourinho n° 68 - realidade concreta a ficcionalizar a poética dos excluidos pela marginalidade sem nome - é por si só, um discurso antropológico, que constitui e conserva várias escrituras hibridas, vários sujeitos, de uma condi9ao igualmente hibrida, - todos destruidores da cómoda, padronizada e apaziguadora visao coesa, humanizadora, nacionalista-cidada.

Importante, nesse caso, reamar a figura do preto Temistocles, figura lendária e misteriosa, que deixou muitas histórias eternizadas pelos moradores do 68, ao recontarem suas peripécias para os filhos e vizinhos.

Quando saiu, a sua bagagem consistía apenas em fetiches africanos e material para feiti9os. As maes relatavam que, no tempo do negro Temistocles, muita gente importante da Cidade subia as escadas cheias de rato para consulta-lo. [... ] No dia de sua mudan9a, toda a popula9ao do prédio se apertou na escada para ve-lo passar. Afirmavam as histórias que ele nascera na África, fizera há muito cem anos e fora escravo em Santo Amaro.11

A manifesta9ao de subjetividades primitivas e ancestrais como a referencia á origem e religiosidade de Temistocles, emo9oes e oposi9oes, misturam-se a saberes intermediários, caminhando á margem daqueles já reconhecidos pela cultura vigente e estabelecida, conduzindo, nessa miscelánea ou "contamina9ao", a uma compreensao da alteridade, ao entendimento do outro e á sua verdade, á ultrapassagem de fronteiras que, necessariamente, abre espa9o para um reconhecimento das diferen9as e das suas implica9oes sócio-ideológicas, morais e culturais.

Nesse espa9o, encontra-se, por exemplo, o Judeu mascate, sobrevivente de tantas peripécias e paises, vendedor de sombrinhas e sedas falsificadas:

E lá estava no quarto andar do 68 na Ladeira do Pelourinho, naquele mundo de homens de pátrias diferentes e distantes, onde só ele entendia a todos, porque só ele nao tinha pátria, nem leis nem deus.12

Encontra-se ainda a tuberculosa que, com sua tosse incessante, incómoda a todos os moradores, torna-se um simbolo impotente, mas concreto das mazelas sociais. O sapateiro

13

espanhol, anarquista que queria destruir tudo , convivia com as prostitutas, com o mendigo Caba9a - « Ele também morava no 68, na Ladeira do Pelourinho e, como os ratos, era inquilino gratuito » (S.P.251) - com a surda muda ; o aleijado que trabalhava como palha9o para poder sobreviver, a preta vendedora de acarajé, enfim com todo tipo de pessoas que compunham um "etnopanorama"14 desolador fazendo coexistir uma minoria « nacional »

11 Amado, op. cit., p. 300. 12Amado, op. cit., p. 239.

13 ... pegava o gato e levava-o ao pequeño buraco que servia de janela. Olhava a cidade colonial.

- Zug, é preciso destruir tudo isso. Tudo está errado. Zug lambia o nariz.

- Você é um burgués indecente" (Amado, op. cit. 235)

14Arjun Appadurai, Disjunçâo e diferença na economia cultural global, In: Mike Featherstone (org.), Cultura global: Nacionalismo. Globalizaçâo e modernidade, Petrópolis, 3.ed., Editora Vozes, 1999, p. 311-327.

incorporada por valores e constru9oes culturais étnicas, políticas e sociais diferentes, sobrevivendo em uma geografía fronteiri9a da alteridade indigna e da identidade nao reconhecida. A prática desse viver fronteiri9o esconde e acolhe, muitas vezes, práticas de sobrevivencia inconcebíveis com um modelo forjado de identidade nacional mas, ao mesmo tempo, deixa a entender que o universo apresentado por Amado recusa a idéia de uma na9ao cristalizada para emergir, segundo Babha15 como uma entidade de narrativas e discursos, ambígua e dinámica. A identidade nacional veiculada em Suor é uma identidade ambígua, ambivalente, cosmopolita, "universalizante", fazendo com que as cenas interiores, localizadas no corti9o, escancarem, na maioria das vezes, o público, o exterior, a dialética do público/privado como também um fator de questionamento dos mecanismos da cultura plural e da multiplicidade de sujeitos nela agentes e envolvidos.

Nesse sentido, o casarao referenda uma nova realidade, podendo definir-se como um novo mundo,

em rela9ao ao papel da linguagem, á constru9ao do sujeito, á teoria da identidade (inclusive genero, rela9Óes interpessoais e reivindica9Óes identitárias) e á concep9ao da realidade e do conhecimento, no ámbito de uma antropologia urbana, que torna visível uma outra forma de metrópole , difundindo-se nas periferias ingovernáveis e em constante movencia, onde se desenham cartografias e se deslocam os lugares institucionais do poder e do governo. 16

Constitui-se assim um microcosmo em rela9ao á metrópole Salvador/Bahia: uma sociedade de diversidade identitária redimensionando suas fronteiras e fechamentos ao problematizar conceitos como identidade, diferen9a, igualdade, universalismo, subjetividade, cidadania, ética. Entende-se assim a presera de D. Risoleta, a costureira incansável,

Com a cabe9a caída sobre a máquina, deixava ver os cabelos brancos que come9avam a dominar os pretos como um partido político fraco que aos poucos vai adquirindo adeptos17.

E sua sobrinha, uma sonhadora que, ao conhecer as ideias de Alvaro Lima - ativista político - abandona o ideário burgues

[ ...] Dona Risoleta pedalava sempre, incansavelmente, acompanhada pelo olhar triste de Linda, que foi se esmorecendo aos poucos até dormir com um rapaz rico que a via passar, se apaixonava por ela, casavam-se num dia maravilhoso de sol brando e branda aragem, fila de automóveis, ela de véu grinalda, vestido que a madrinha fizera.18

15Homi Babha, A questao do outro: diferen9a, discrimina9ao e o discurso do colonialismo, In: H. B. Hollanda (org.), Pós-modernismo e política, Rio de Janeiro, Rocco, 1992.

16Arnaldo Rosa Vianna Neto, Multiculturalismo e pluriculturalismo, In: Eurídice Figueiredo, Conceitos de Literatura e Cultura, Niterói 2a ed., EDUFF/EFJF, 2010, p. 290.

17 Amado, op. cit., p. 234.

18 Amado, op. cit., 235.

voltando-se para as causas do proletariado, dos trabalhadores e excluidos. Nesse momento, entende-se, sobretudo, as

"mulheres sem sobrenomes". Marias de nacionalidades as mais diversas. Casadas umas, com maridos que também nâo possuíam sobrenomes; solteiras outras, magras ou gordas, doentes ou sas, com um único traço de ligaçâo: a pobreza em que viviam. [...] Mulheres que vendiam frutas, lavavam roupas, trabalhavam em fábricas, costuravam, vendiam o corpo. Mulheres sem sobrenome, mulheres do 68 na Ladeira do Pelourinho e de outros sobrados iguais, para quem os poetas nunca fizeram um soneto, elas simbolizam bem a humanidade proletária que se move nas ladeiras e nas ruas escuras. Tiveram uma frase anónima: - Gente sem nome... Gente sem pai... Filhas da puta.19

Impondo à prosa um ritmo poético, Amado consolida, por esse fragmento, a crise de identidade sociocultural que afeta a comunidade do casarao. A aposiçao de um sobrenome, mais do que refletir uma relaçao de filiaçâo ou uniao, conduz a uma condiçao intrínseca de reconhecimento do outro como membro de uma comunidade, conduzindo, por extensao, à percepçao de uma existência, cuja identidade se conjuga inicialmente na paternidade para, em continuidade, se consolidar na percepçao dialógica do outro que também é sujeito, também pertence a um grupo com o qual dialoga e se identifica esse sujeito. Nesse sentido, nao ter sobrenome é, mais do que ser plural, é nao pertencer a nenhum grupo, tendo assim, uma identidade forjada no provisório, na negaçao e no nao reconhecimento que o Outro faz de si próprio. Mais uma vez o sobrenome, um dos marcos da identidade nacional - herdada dos portugueses e tao determinante de classes e extratos sociais - passa a referendar a fragilidade dos índices de nacionalidade em favor de referencias simbólicas deste nao pertencimento, de um descentramento que, finalmente, nao atinge somente as mulheres na sua múltipla existência, mas sim a todos: "Gente sem pai... gente sem nome..." configura a nao existência, o nao ser e a exclusao como certezas irrefutáveis de uma condiçao social maquiada pelas verdades formalizadas na falsa e cega sociedade consolidada pelas elites.

Compreende-se agora a força e o poder do movimento que eclode na comunidade do casarao a partir da greve de bondes. - « Parece estranho que todo o 68 se visse envolvido nas consequências da greve quando apenas os operários da companhia de bondes estavam nela interessados » (S.p.337) - Essa, abortada por denúncias anónimas, prenunciava um movimento coeso, a partir do qual, os moradores, inflamados por uma sede de justiça, de reconhecimento e de condiçôes adequadas de trabalho, passam a se movimentar, confiando em adesôes solidárias e novos valores de identidade e de reconhecimento desta comunidade.

180

Da escada sentiam todo o movimento da casa. Toufik que gritava no sótao. A voz de seu Fernandez na venda. Os passos da italiana no segundo andar. A moga de azul que saía. O canto das lavadeiras que comegavam a abandonar o trabalho.

19

Amado, op. cit., 324.

A noite aumentava a escuridao da escada. Isaac, o judeu, se juntou ao grupo. E explicou a Linda: -Vocé nao vé? Nós fizemos uma outra escada na casa.

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- Como? - o Vermelho nao entendia... 181

- Sim, a escada era a única coisa que ligava os inquilinos... Hoje há outra, a solidariedade que nós despertamos...20

A escada - famigerada e ávida esfinge, passagem e simbolismo de um universo opressor e sombrio, acesso ao entre-lugar, a um além-cultural e subjetivo - adquire uma nova fun9ao e sai para o exterior, configurando um novo olhar frontero. Aliás, aos olhos de Babha, "Uma fronteira nao é o ponto onde algo termina, mas como os gregos reconheceram , [ .. ] é o ponto a partir do qual algo come9a a se fazer presente"21 . A solidariedade se transforma em passagem para o exterior, determinando a fronteira de um novo espa9o, igualmente subjetivo e ordenador ; um terceiro espa9o, uma « terceira margem », nao mais aquela de uma Salvador ambivalente e nacional, nao mais aquela de um n° 68, plural, provisório e sem identidade, mas sim a terceira margem da busca pela dignidade, pela cidadania, pelo respeito ao outro e pelo reconhecimento de si e de uma identidade - múltipla e miscigenada, mas identidade.

Jogaram manifestos. Mo9as nas janelas. Parecia até uma festa. O rosto magro do propagandista de produtos domésticos. Ouviram-se gritos em árabe. Outros em espanhol. Seu Fernando fechara a venda. O cabelo bem alisado do violinista e a barba por fazer do Toufik. Todo o 68 ali estava. Descera as escadas como um só homem.22

Essa fronteira, que agora localiza, extramuros, seus limites pelo exercício humanizado de uma nova subjetividade em constru9ao, concretiza as rela9oes interpessoais acima de um território geopolítico, de uma ra9a, de um genero ou de uma orienta9ao, fazendo valer a diferen9a cultural como instrumento de um novo campo subjetivo, organizador de novos signos de identidade, contesta9ao e inova9ao face á sociedade .

Assim, compreende-se igualmente o antológico e poético embate entre os moradores e os investigadores:

Os investigadores vinham do terreiro, subiam da Baixa dos sapateiros. A primeira bala se perdeu entre as pedras da rua. A multidao nao fugiu. A segunda derrubou a surda-muda, que soltou um som horroroso de maldi9ao. Alvaro Lima gritou: -Proletários de todas as na9oes...

A bala pegou na testa, ele caiu em cima de Linda. A mo9a sentiu o sangue no rosto e no vestido. Mas nao teve medo, nem se moveu.

Entao a multidao avan9ou para os investigadores, de bra9os levantados.23

Amado, op. cit., 337. JHomi Babha, O local da cultura, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998. p.19.

2 Amado, op. cit., 339.

3 Amado, op. cit., 339.

A morte de Álvaro Lima, perpassada de um forte cunho ideológico-socialista silenciado emblematicamente, como foi sua forma9ao, passa a ser sinal de vida, de busca, de reconhecimento e de verdade. Uma nova narrativa se impoe, marcando simbolicamente, as cenas discursivas desta nova identidade, nao mais alicer9ada na Ladeira do Pelourinho n° 68, mas sim no espa9o edificado e reinventado pela identidade entrevista nas promessas proletárias e nas promessas de dignidade e cidadania imprimidas no discurso da valoriza9ao do sujeito, do individuo.

Dessa forma - e pensando mais especificamente nas poéticas romanescas de Jorge Amado e em suas implica9oes politicas - acredita-se poder observar em Suor uma adesao, ainda idealizada, do escritor ao movimento comunista, o que se desenvolverá com mais densidade a partir dos outros romances.

Em Suor, visto talvez equivocadamente como romance de aprendiz, desenha-se um panorama social que, fazendo reconhecer as antinomias e dialéticas do exercicio das

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subjetividades, antecipa - ainda de modo idealizado e provavelmente utópico - as saidas possiveis para as situa9oes antagónicas que se resumem no duro exercicio de viver. Com toda a descri9ao árida e penosa dos personagens e de suas condi9oes, com toda a multiplicidade de cenas surpreendentes e assustadoramente realistas, a partir de um

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naturalismo critico25, sem nuances, expondo a anarquia e o nao viver, sobrevive nessa obra a poética da exclusao como uma possibilidade de salva9ao deste mundo tao indiferente.

Se Cacau, nas palavras de Jorge Amado, pretende ser um romance proletário, tal como afirma em nota á sua edi9ao de 1933:

Tentei contar neste livro, com um minimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário26

ouso inconcluir essas observa9oes pensando em Suor nao ainda como um romance proletário mas sim um visionário romance do épico humano, no qual a a9ao proletária pode ser empreendida como uma possibilidade de salva9ao e de reconstru9ao de um universo socioeconómico e cultural baseado em outras rela9oes que nao aquela do poder, do colonizado/colonizador, da metrópole/colónia e, mais atualmente, do primeiro mundo/terceiro mundo. Aliás, Silviano Santigo, em Uma literatura nos trópicos, adverte que

o imaginário, no espa9o do neocolonialismo, nao pode ser mais o da ignoráncia ou da ingenuidade, nutrido por uma imagina9ao simplista dos dados oferecidos pela experiencia do autor, mas se afirmaria mais e mais como uma escritura sobre outra

Adjetivo emprestado do título da obra de Eduardo Assis DUARTE, Jorge Amado: romance em tempo de utopia, Rio de Janeiro, Record, 1996, 227 p.

25 Tati Miércio, Estilo e revoluçao no Romance de Jorge Amado, In: Jorge Amado, Povo e Terra: 40 anos de Literatura, Rio de Janeiro, Martins Editora, 1972, p. 125.

26 Amado, op. cit,, p. 121.

escritura.27

permitindo ao leitor entender Suor como uma tarefa da poética e humanizada lucidez do escritor, a investir na constru9ao de uma escritura-leitura igualmente lúcida, nascida da denúncia de um cotidiano social desregrado, sem nenhuma identidade que aponta para a constru9ao de uma moral solidária entre os moradores, excluídos grotescamente dignos da Ladeira do Pelourinho, n° 68.

Enfim, e interrompendo esse recorte oblíquo de uma condi9ao plural, pode-se intuir portanto que até entao nao existe romance proletário, existe a escritura sensível de uma escritura sociocultural; um romance que acredita no homem e nas suas causas e que, a partir de uma reconstitui9ao das identidades subjetivas e plurais que o homem Carrega, permite comungar essencias unificadoras de valores e diferen9as maiores, passiveis de se resolver -utopicamente ? - no entendimento da alteridade e da ideologia, ainda que escritural.

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